ADVERTENCIA Com o titulo Lendas, crenças e superstições, publiquei em 1881 (1) um artigo, no qual apresentei algumas lendas do Amazonas que escrevi, baseandome nas indigenas que affectam o moral do tapuyo, e que foram todas transplantadas de paiz estranho e acclimadas entre nós. Suppunha, então, que não existiriam outras verdadeiramente indigenas, porque o proprio mytho do Korupira, quer me parecer, é companheiro do Muyrakyta, isto é, veio da Asia. Estudo posterior, porém, leva-me hoje a modificar essa opinião, apresentando agora não só as lendas do Korupira e do Yurupary como outras, mais propriamente contos ou apologos, que me parecem filhos da infancia da população amazonica, e que foram conservados pela tradição na propria lingua e com as proprias palavras, que, como outr'ora, hoje são referidos. A circumstancia de sómente serem conhecidos pelos tapuyos, que apenas pela lingua geral os contão, fez com que outr'ora muitos me escapassem e que pelo mesmo motivo tenhão ficado desconhecidos, e que, d'este modo a pouco e pouco desappareçam. O facto de quasi já se nào fallar a lingua geral, e de se ter a morte encarregado de chamar a si grande parte d'aquelles velhos, que sabiam esses contos, tem feito com que poucas pessoas no Amazonas os saibam, e penso mesmo que fóra da provincia são completamente desconhecidos. A Poranduba Amazonense ou kochiyma uara porandub, vem, pois, registrar esses pequenos contos do tempo antigo que se referem á natureza do immenso valle do Amazonas, fructos da observação selvicola, formando uma collecção cuja leitura é innocente e instructiva, mostrando ao mesmo tempo symbolicamente os costumes de alguns animaes da sua fauna. (1) Revista Brasileira, 1881, X, pag. 24. Além das lendas da Uyara, Pirá Yauara postas em verso pelo B.el Campos Porto e publicadas n'O Paiz, do Rio de Janeiro, publiquei outras não conhecidas, como a do Pahy tunaré, que foi traduzida em inglez, por Herb. Smith e pelo Rio News, e em francez pelo La Nation, de Paris; a do Yacy uarua, que sob o titulo de Tapera da Lua Mello Moraes Filho publicou na sua Litteratura e poz em bellos versos na Revista anthropologica e reproduziu nos seus Mythos e poemas, as do Muyrakytā, ou pedras verdes, que o mesmo autor pôz tambem em versos nas mesmas obras e nos Poëmes de l'esclavage, sendo tambem traduzidas pelo Sr. Deleau no Messager du Brésil e outras que se encontram nos meus trabalhos intitulados Rio Yamundá, Rio Urubù, Rio Yatapù, etc., publicados em 1874 e 1875. Ha muito que dous motivos me levaram a colher e reunir essas flôres da imaginação de um povo ainda no seu estado primitivo, e que medravam solitarias, n'um ou n'outro ponto, conservadas ainda apezar da invasão civilisadora; um para que completamente não desappareção e mostrem o estado intellectual da raça; outro para fazer ver como a antiga lingua geral se tem modificado e como é ella hoje fallada. Dividi, por isso, este trabalho em duas partes. Na primeira apresento o folk lore (1), na segunda o vocabulario em que se notam as alterações por que tem passado a lingua geral no Pará e no Amazonas, e por onde se evidencia que as differentes orthographias e pronuncias distanciaram-a tanto da maneira pela qual era antigamente fallada, que, quem conhece o guarani não entende o tupi moderno e vice-versa, posto que sejam ambos uma só lingua. O nome Poranduba que enlaça os contos deste livro serve de exemplo. Poranduba (2), não é mais do que a contracção da preposição poro, fazendo as funcções do superlativo, andu, noticias, aub, phantastico, illusorio, significando historias phantasticas, fabulas, abusões, etc.; como porandiba são historias tristes, más; de aiba, mal, máo, entretanto que fazem derivar de pora, habitante, nheeng, falla, e dyba muito, com o significado de novidades. E' verdade que poranduba póde tambem ter esta significação, porém, então a etymologia é outra, vem da mesma preposição poro e do verbo endub, escutar, sentir, donde o verbo porandu, perguntar, questionar, interrogar. No mesmo caso está moranduba que se deriva de moro por poro, andu e aub terá a mesma significação, podendo porém ser tambem novidades derivando-se de mbaé ou maá e andub, entrando o r por euphonia. No Amazonas ha a maranduba, isto é, as historias que os chefes, os paes, contam á tribu e aos filhos, perpetuando os feitos de seus avós, porém então a interpretação é outra: vem de marã, desordem, barulho, guerra, e andub, noticias, historias de guerras e factos verdadeiros e não phantasticos ou mythologicos, como as que refere a poranduba. Quizera aqui reunir outras lendas como as do Jaboty e as da Raposa com suas differentes aventuras, mais ou menos variadas, segundo as localidades, mas como sejam exoticas e muito conhecidas, quer no Valle Amazonico, quer no Imperio, em geral, aqui deixo de mencional-as, não só por esse motivo como tambem porque d'ellas já se occuparam o Professor Hart (3), o (1) De Volk, povo, e lehre, doctrina, dogma, lição, etc., como fabellehre, mythología. Este neologismo foi adoptado para exprimir o conto popular ou mythologico. (2) Baptista Caetano deriva de por, o que ha, e endub, sentir, formando um verbo transitorio com a significação de perguntar, interrogar. (3) Amazon tortoise myths., 1875. Dr. Couto Magalhães (1), Herbert Smith (2) e o Sr. Edward Rand (3). Intimamente ligados aos contos do Jaboty, que é o cyclo do Renard, andam varias superstições, dando ao mesmo chelonio propriedades maravilhosas, que mais nos mostram a sua origem estrangeira. Estas propriedades são prejuizos das velhas crenças romanas incutidas nos portuguezes () que com o boto (golphinho), a uyara (sereia ou ondina) (5), as bruxas, montadas em cabos de vassouras e os lobishomens, dos monturos, trouxeram tambem varios contos para nosso paiz, taes como: o da Carocha, e do Macaco e seu rabo (6) conto este que ouvi na minha infancia e que o Sr. Edward Rand, tomando como outros muitos, por indigena o apresentou sob o titulo « The monkey who cut off his tail» entre os contos do Jaboty. Como exemplo de que as lendas do Jaboty são exoticas, aqui acclimadas, pelo meio, citarei a muito conhecida no Valle Amazonico, a do Yaboty e o Urubu, e que intitulam tambem o Yaboty e a festa no céo. ་ Havia uma festa no céo, e sendo convidados o Jaboty e o Urubú, aquelle apostou com este como elle chegaria primeiro. O Urubú acceitou a proposta e arrumou a matolotagem para viagem dentro de um paneiro. A' noite convencionaram que a partida seria de madrugada, e foram dormir. Quando o Jaboty vio que o Urubú estava dormindo metteu-se no paneiro, por baixo da matalotagem. Pela madrugada partio o Urubú, e chegando ao ceo deixou o seu paneiro e foi ver o que havia de maravilhoso. Aproveitou-se então o Jaboty da occasião, sahio do paneiro e tambem foi passeiar. Mais tarde quando já estava cançado o Urubú de esperar pelo Jaboty o encontrou. Perdendo esta aposta, depois de terminada a festa, o Urubú propoz outra. Vamos, respondeu o Jaboty, e partiram, deixando-se o Jaboty cahir, emquanto o Urubú voava. (1) O Selvagem, 1876. (2) Brazil the Amazons and the coast, 1879. (3) Traditionary Stories extant among the Tapoia indians, 1882. (*) Os contos que Perrault publicou na sua velhice, ha quasi dous seculos, foram acclimados em Portugal e transplantados para o Brazil, onde servem para entreter a meninice. Quem não conhece o «Botas de sete leguas », o « Carrapatinho », o « Matador de gigantes », o « Tom Pouce», que não são mais do que Le petit Poucet, como a «Gata borralheira» é a Cendrillon? (5) As lendas da Uyara, do Boto e outras publiquei na Revista Brazileira, X, pag. 24. (6) Este conto David Corazzi publicou na sua collecção de Premios para crianças, sob o titulo Frum, frum, frum que vou para Angola, e Silvio Romero tambem publicou à pags. 143 do VI vol. da Revista Brazileira, sob o titulo O macaco e o rabo, quando em Coimbra, O rabo do gato, como nos diz Adolpho Coelho, a mesma historia, termina: «Fum, fum, fum vou para a minha escola » e pelo Romanceiro do Archipelago do Madeira, assim acaba: « Adeus que me vou embora. Ferrum-fumfum, ferrum-fumfum ». Aproximando-se o Jaboty da terra, e vendo uma grande pedra sobre a qual ia cahir, bradou : A pedra arredou-se e o Jaboty cahio batendo sobre a terra, achatando-selhe o peito e rachando-se-lhe o casco, como ainda hoje o tem. (1) Não admira pois que o Sr. Rand (americano) fizesse indigena o conto do Macaco quando o Sr. Silvio Romero, no cap. 7. do seu artigo A poesia popular no Brazil, publicado á pags. 125, do tomo 6. da Revista Brazileira diz que o conto da festa no céo é muito diverso dos de origem portugueza, cujos originaes primitivos podem ser cotejados na recente collecção de Adolpho Coelho e o apresenta como indiano, com o titulo O Kagado e a festa no céo. (2) Apezar d'esta affirmativa, quem ler os Contos populares de Adolpho Coelho, ha de, á pags. 15 sob o titulo A Raposa e o Lobo, encontrar n'essa mesma pagina a certidão de baptismo d'esse conto, por onde se vê que é legitimo portuguez da freguezia de Ourilhe, do conselho de Celorico de Bastos, provincia da Beira Alta, nas raias da Hespanha; é apenas brazileiro por estar incluido no Tit. II Art. 6. § 4.° da nossa Constituição. Os heróes do conto indiano de Silvio Romero são a Garça e o Kagado, os do conto de Adolpho Coelho a Garça e a Raposa; esta quando cahe vae dizendo: Arredem-se pedras, arredem-se pãos, senão vos quebrareis. >> O proprio nome de Kagado, do heróe, só é dado por portuguezes, porque no Brazil entre os indigenas só é conhecido o de Yaboty ou Jaboty. (1) D'esta lenda ha uma outra variante, tambem no Amazonas, em que o heróe é um Sapo que chega ao ceo escondido dentro da viola que o Urubú levara para a festa, e que termina pela mesma fórma. A tartaruga que cahe e se despedaça, se encontra tambem nos mythos do Livro Sagrado dos Nahuas, do Mexico. (2) Depois de escripto este trabalho chegou-me ás mãos os Contos populares do Brazil, do mesmo autor, prefaciada pelo Sr. Theophilo Braga, publicados em 1885, em que o autor muda de opinião e inclue esse conto entre os de proveniencia Africana. Entretanto, entre o conto portuguez, que vem do Esopo, o Phrygio, e do qual se aproveitou La Fontaine, e o producto semelhante da acclimação no Brazil, ha mais naturalidade n'este do que n'aquelle. Entre a Garça e o Urubú a naturalidade é mais caracteristica no conto Amazonense, porque para ir ao céo é mais natural ir o Urubú, que tem vôo prolongado e se eleva ás nuvens, do que a Garça que vôa horisontalmente, sempre proximo da terra, e, entre a Raposa e o Jaboty, este exprime com verdade o conto apresentando o seu plastron achatado e o casco dividido como se fosse despedaçado, em quanto que a raposa nada tem de caracteristico que mostre uma grande quéda. D'este conto nasceu ainda a variante La tortue et les deux canards, como o do Jaboty que apostou carreira com o Veado, tão referido no Amazonas, e publicado por Couto de Magalhães, não é mais do que uma outra da fabula Le lièvre et la tortue. Além da astucia do Jaboty, que urde as lendas, tem elle virtudes entre os naturaes mesmo depois de morto; assim dizem, por exemplo, que creando-se em casa um Jaboty, sobrevêm atrazos, revezes, e que se O casco superior do Jaboty, depois de assadas e comidas as carnes, fôr lançado em algum rio, com a parte interna para cima, produzirá logo grande temporal, o que não é mais do que crendice luzitana, bem recebida pelo espirito inculto do indio; o casco superior do Jaboty empregado como texto de panella, não deixa ferver a agua por mais fogo que se lhe faça; uma torcida ensopada em sangue de Jaboty e posta em qualquer candeia, produz uma luz que tem a propriedade de fazer ouvir o que não se ouve normalmente; matando-se um Jaboty e comendo-se-lhe immediatamente o coração, fica-se sem ter sêde durante longo tempo, etc.; e assim muitas outras que será enfadonho referir, todas mais ou menos d'este jaez, e que Cortez, nos seus Segredos da Natureza, cita entre as superstições portuguezas. Reuni, pois, n'um ramalhete, que caracterisa o genio tapuyo, não só as suas lendas cosmogonicas e mythologicas, como as astronomicas e zoologicas, incluindo tambem algumas botanicas. Enlaçam o ramalhete as cantigas com que as mães embalavam seus filhos e depois as crianças repetiam, n'aquella toada cheia de tristeza e melancolia, que sempre acompanha o indio, mesmo no meio dos seus prazeres orgiacos, e tambem as que cantavam para animar as suas danças e os seus trabalhos. A essas cantigas reuní as do periodo de transição, assim como a do Çairé, posto que religiosa, para que se não perdessem as lettras e a musica, visto como já hoje é rarissimo encontrar quem a saiba, por ter cahido em desuso. Quer os contos, quer as cantigas são por assim dizer stenographadas como |