Poem-me onde se use toda a feridade, Entre leoes e tigres, e verei
Se nelles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei: Alli co'o amor intrinseco, e vontade, Naquelle por quem mouro, criarei Estas reliquias suas que aqui viste, Que refrigerio sejam da mai triste.
Queria perdoar-lhe o Rei benino, Movido das palavras que o magoam; Mas o pertinaz povo, e seu destino (Que desta sorte o quiz) lhe não perdoam. Arrancam das espadas de aço fino,
Os que por bom tal feito alli apregoam. Contra huma dama, ó peitos carniceiros, Feros vos mostraïs, e cavalleiros?
Qual contra a linda moça Polyxena, Consolação extrema da mai velha, Porque a sombra de Achilles a condena, Co'o ferro o duro Pyrrho se apparelha : Mas ella os olhos, com que o ar serena, (Bem como paciente, e mansa ovelha Na misera mai postos, que endoudece, Ao duro sacrificio se offerece:
Taes contra Ignez os brutos matadores, No collo de alabastro, que sostinha As obras com que amor matou de amores Aquelle que despois a fez Rainha,
As espadas banhando, e as brancas flores, Que ella dos olhos seus regadas tinha, Se encarniçavam, fervidos e irosos, No futuro castigo não cuidosos.
Bem puderas, ó Sol, da vista destes, Teus raios apartar aquelle dia,
Como da seva mesa de Thyestes, Quando os filhos por mão de Atreo comia! Vós, ó concavos valles, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro que lhe ouvistes, Por muito grande espaço repetistes!
Assi como a bonina, que cortada Antes do tempo foi, candida e bella, Sendo das mãos lascivas maltratada Da menina, que a trouxe na capella, O cheiro traz perdido, e a cor murchada; Tal está morta a pallida donzella, Seccas do rosto as rosas, e perdida
A branca e viva cor, co'a doce vida.
As filhas do Mondego a morte escura Longo tempo chorando memoraram; E por memoria eterna, em fonte pura As lagrimas choradas transformaram : O nome lhe puzeram, que inda dura, Dos amores de Ignez, que alli passaram. Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lagrimas são a agua, e o nome amores.
Não correo muito tempo que a vingança Não visse Pedro das mortaes feridas; Que em tomando do Reino a governança, A tomou dos fugidos homicidas : Do outro Pedro cruissimo os alcança; Que ambos imigos das humanas vidas, O concerto fizeram duro e injusto, Que com Lepido, e Antonio fez Augusto.
Este, castigador foi rigoroso
De latrocinios, mortes, e adulterios Fazer nos maos cruezas, fero e iroso, Eram os seus mais certos refrigerios. As cidades guardando justiçoso, De todos os soberbos vituperios, Mais ladrões castigando á morte deo, Que o vagabundo Alcides, ou Theseo.
Do justo, e duro Pedro nasce o brando, (Vede da natureza o desconcerto!)
Remisso, e sem cuidado algum, Fernando, Que todo o reino poz em muito aperto: Que vindo o Castelhano devastando As terras sem defeza, esteve perto De destruir-se o Reino totalmente; Que hum fraco Rei faz fraca a forte gente.
Ou foi castigo claro do peccado De tirar Leonor a seu marido, E casar-se com ella, de enlevado, N'hum falso parecer mal entendido; Ou foi que o coração sujeito e dado Ao vicio vil, de quem se vio rendido, Molle se fez, e fraco; e bem parece, Que hum baixo amor os fortes enfraquece.
Do peccado tiveram sempre a pena Muitos, , que Deos o quiz, e permittio; Os que foram roubar a bella Helena; E com Apio tambem Tarquino o vio: Pois por quem David sancto se condena? Ou quem o Tribu illustre destruïo De Benjamin? Bem claro no-lo ensina Por Sara Pharaó, Sichem por Dina.
E pois se os peitos fortes enfraquece Hum inconcesso amor desatinado, Bem no filho de Alcmena se parece, Quando em Omphale andava transformado. De Marco Antonio a fama se escurece Com ser tanto a Cleopatra affeiçoado. Tu tambem Poeno prospero o sentiste, Despois que hu'a moça vil na Apulia viste!
Mas quem pode livrar-se por ventura Dos laços que Amor arma brandamente Entre as rosas, e a neve humana pura, O ouro, e o alabastro transparente? Quem de huma peregrina formosura, De hum vulto de Medusa propriamente, Que o coração converte que tem preso, Em pedra não; mas em desejo acceso?
Quem vio hum olhar seguro, hum gesto brando, Huma suave, e angelica excellencia,
Que em si está sempre as almas transformando, Que tivesse contra ella resistencia? Desculpado por certo está Fernando, Para quem tem de amor experiencia : Mas antes tendo livre a phantasia, Por muito mais culpado o julgaria.
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