as de Scipião africano: Ingrata patria, non possidebis ossa mea». É singular o dizer o Camões que estas foram as derradeiras vozes que soltou, já prestes á partida, quando antes parece natural que fossem as primeiras. Porque não havemos de suppor que na longa e trabalhosa navegação tão silencioso se fizesse, que nunca mais a boca se descerrasse a quem era, por communicativo temperamento, mais para gracioso interlocutor, que para intratavel e mudo pythagorico. Cumpre advertir que o poeta repetindo as palavras de Scipião, em termos facetos e joviaes, refere este passo e alguns mais da sua vida, segundo era seu pendor, quando em prosa ou em poemas de chiste e de donaire, allude ás grandes miserias da sua vida. Se elle do chapiteo da náo, olhando entre saudoso e irritado para a cidade de Lisboa, que espreguiçada no amphitheatro das suas collinas pittorescas, sorria ironicamente ás desventuras do grande portuguez, soltou ao vento aquellas vozes memoraveis, não seria de certo com a tragica solemnidade, com que saindo dos labios do romano, estamparam na envilecida fronte da sua patria o stygma de ingrata e deshonrada. O que do poeta sabemos durante a viagem está na elegia II compendiado. N'ella o Camões, refere-se ao poeta Simonides, o inventor da arte mnemonica, e a Themistocles, tão mimoso da victoria, quão maltratado de ingratos concidadãos. Figura o famoso capitão, lastimando que descobrisse o grego malavisado e engenhoso uma arte de conservar lembranças do passado, e julgando-se feliz se podesse alguem industrial-o na sciencia de esquecer: Se me désses huma arte, qu'em meus dias, Oh quanto melhor obra me farias! De que serve ás pessoas o lembrar-se E prosegue o poeta maldizendo quasi a sua estrella, porque o não criara Selvatico no mundo, e habitante Na dura Scythia e no mais duro della; Ou no Caucaso horrendo fraco infante Porque a cerviz ferina e inhumana Ou em pago das aguas qu'estilei As que passei do mar, foram do Lethe, Sempre as lembranças do malfadado amor lhe traziam turbado o pensamento. Quizera esquecer-se d'elle, mas não pode acabar comsigo desterral-o da memoria. E aqui, imitando um triste pensamento do poeta florentino, ou encontrando-se com elle na igualdade e rigor das suas dores, exclama o Camões sentidamente: Já, Senhor, cahirá como a lembrança, No mal, do bem passado he triste e dura, O que o Dante no canto v do seu Inferno exprimiu com o sombrio laconismo do seu estro n'estas palavras, onde ressumbra a mais amarga desesperação da amantissima Francesca: Nessun maggior dolore Che ricordarsi del tempo felice Nella miseria e ció sa'l tuo dottore. Na formosa elegia vae o poeta narrando a sua viagem, e como durante o seu decurso o iam ma guando saudades intensas do que deixava, e que porventura se temia de nunca mais tornar a ver: A bemaventurança já passada Diante de mi tinha tão presente, Como se não mudasse o tempo nada. E assim nos vae contando como a náo ao principio mareava impellida pelos ventos bonançosos e propicios, e como o poeta, nos momentos ociosos estava mirando as aguas, E com o gesto immoto e descontente, Por não mostrar meu mal a toda a gente, se estaria quedo encostado á amurada, confiando ao Oceano immenso e profundissimo as penas e os lamentos da sua alma saudosa e entristecida. Nem quando a tormenta vem saltear o baixel, em que navega, o desamparam as amargas memorias e as saudades pungentissimas. Estas lembranças, que me acompanhavam Nem na tormenta triste me deixavam. É chegado ao cabo da Boa Esperança. Este nome, de augurio felicissimo para os primeiros navegadores, mais lhe vem aguçar o aculeo, que lhe punge o coração. Aqui lhe parece ver a antiphrase cruel da lastimosa vida, que levava. Aqui se avigoram as esperanças dos que demandam aventurosos o Oriente, e aqui se lhe torna mais doloroso o pensamento de que já nada tem que esperar. Levanta-se uma d'aquellas borrascas temerosas, em que o gigante Adamastor amostra aos ousados mareantes como lugubres primicias o que hão de ser as tempestades e os trabalhos ao sulcar os mares orientaes: Eis a noite com nuvens s'escurece; E todo o largo Oceano s'embravece. A machina do mundo parecia Qu'em tormentas se vinha desfazendo; Luctando Boreas fero e Noto horrendo, As cordas co'o ruido assoviavam Com gritos para o céo o ar coalhavam. Os raios por Vulcano fabricados Vibrava o fero e aspero Tonante, Tremendo os Polos ambos de assombrados. N'estes esplendidos tercetos debuxa o Camões o horrendo painel da tempestade, e descreve com |