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CAPITULO IX

A PARTIDA PARA A INDIA

Já no largo Oceano navegavam
As inquietas ondas apartando.

Lusiadas, 1, 19.

A 24 de março de 1553 sarpava a náo S. Bento,
em que o poeta ia navegando. As outras náos,
que compunham a armada, eram a Santa Cruz,
de que ia por capitão Belchior de Sousa, a Ro-
sario, ao mando de D. Paio de Noronha, e ou-
tra, cuja capitania se commetera a Ruy Pereira
da Camara. De conserva com os demais navios
da armada, foi singrando a capitania, mas ao cabo
de alguns dias os ventos recresceram tão desabri-
dos e ponteiros, e os mares tão cavados e inhos-
pitos, que foi forçado aos baixeis o separarem-se,
buscando cada qual sulcar nas ondas o caminho,
que menos precario lhe promettia o salvamento.
A náo que levava no seu bojo a triste fortuna do
Camões, e a maior gloria intellectual da sua patria, logrou dobrar sem notaveis avarias o Cabo da Boa Esperança, e engolfando-se ao mar largo ao oriente da ilha de S. Lourenço, ou Madagascar, alcançou lançar o ferro na barra de Goa, no mesmo anno em que partira de Portugal. Ao contemplar pela vez primeira o cabo tormentoso, do qual as perseverantes e.arrojadas tentativas dos navegantes portuguezes tinham feito, na phantasia popular, quasi um vulto mythologico, cercado de terrores e de ameaças, o estro do Camões certamente se inflammou e talvez então esboçou na phantasia os contornos indecisos do seu giganteo Adamastor.

Affirma o poeta na sua primeira carta que ao despedir-se da patria, ou antes ao execral-a, porque, mãe desnaturada, o engeitava, lhe comminara aquella pena, quasi infamia, com que Scipião tivera a Roma por indigna de possuir a ossada gloriosa do invencivel capitão.

Se acaso é authentica e merecedora de inteira fé a carta do Camões, não ha duvida que elle diz ter de novo proferido a sentença do romano. «E assi posto em este estado, escreve o poeta, que me não via senão por entre lusco e fusco, as derradeiras palavras, que na náo disse, foram

as de Scipião africano: Ingrata patria, non possidebis ossa mea).

É singular o dizer o Camões que estas foram as derradeiras vozes que soltou, já prestes á partida, quando antes parece natural que fossem as primeiras. Porque não havemos de suppor que na longa e trabalhosa navegação tão silencioso se fizesse, que nunca mais a bôca se descerrasse a quem era, por communicativo temperamento, mais para gracioso interlocutor, que para intratavel e mudo pythagorico.

Cumpre advertir que o poeta repetindo as palavras de Scipião, em termos facetos e joviaes, refere este passo e alguns mais da sua vida, -segundo era seu pendor, quando em prosa ou em poemas de chiste e de donaire, allude ás grandes miserias da sua vida. Se elle do chapiteo da náo, olhando entre saudoso e irritado para a cidade de Lisboa, que espreguiçada no amphitheatro das suas collinas pittorescas, sorria ironicamente ás desventuras do grande portuguez, soltou ao vento aquellas vozes memoraveis, não seria de certo com a tragica solemnidade, com que saindo dos labios do romano, estamparam na envilecida fronte da sua patria o stygma de ingrata e deshonrada.

que do

O poeta sabemos durante a viagem está na elegia ii compendiado. N'ella o Camões, refere-se ao poeta Simonides, o inventor da arte mnemonica, e a Themistocles, tão mimoso da victoria, quão maltratado de ingratos concidadãos. Figura o famoso capitão, lastimando que descobrisse o grego malavisado e engenhoso uma arte de conservar lembranças do passado, e julgando-se feliz se podesse alguem industrial-o na sciencia de esquecer:

Se me désses huma arte, qu'em meus dias,
Me não lembrasse nada do passado,
Oh quanto melhor obra me farias!

De que serve as pessoas o lembrar-se
Do que se passou já, pois tudo passa,
Senão d’entristecer-se e maguar-se ?

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E prosegue o poeta maldizendo quasi a sua estrella, porque o não criara

Selvatico no mundo, e habitante
Na dura Scythia e no mais duro della;

Ou no Caucaso horrendo fraco infante
Criado ao peito d'huma tigre Hircana,
Homem fora formado de diamante,

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Sempre as lembranças do malfadado amor lhe traziam turbado o pensamento. Quizera esquecer-se d'elle, mas não pode acabar comsigo desterral-o da memoria. E aqui, imitando um triste pensamento do poeta florentino, ou encontrando-se com elle na igualdade e rigor das suas dores, exclama o Camões sentidamente:

Já, Senhor, cahirá como a lembrança,
No mal, do bem passado he triste e dura,
Pois nasce, aonde morre a esperança.

O que o Dante no canto v do seu Inferno exprimiu com o sombrio laconismo do seu estro n'estas palavras, onde ressumbra a mais amarga desesperação da amantissima Francesca :

Nessun maggior dolore
Che ricordarsi del tempo felice
Nella miseria e ció sa'l tuo dottore.

Na formosa elegia vae o poeta narrando a sua viagem, e como durante o seu decurso o iam ma

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