A VIRGEM LOURA (PAGINAS DO CORAÇÃO) I Como é poetica e bella a quadra da infancia ! N'essa primavera da vida, como na primavera do anno, tudo que nos cerca são flôres e perfumes, e tudo que vêmos falla e nos sorri. Os campos viçosos e floridos são o nosso recreio, as borboletas e os colibris nos seduzem, o gorgeio dos passarinhos nos deleita e a tempestade que passa no céo, bramindo na voz do trovão, nos assusta e faz-nos esconder a fronte no seio maternal. Como é poetica e bella a quadra da infancia! E que saudade, que funda saudade não temos d'esse tempo, quando a nossa alma cheia de decepções e despoetisada pelas miserias da vida se recorda melancholica do passado! Pelo menos a mim aconteceu-me isso; toda a vez que me lembro dos meus bellos dias de creança, estremeço e sinto que uma lagrima se desfia silenciosa pela face. E gosto d'esta lagrima; quando se chora é porque o coração está vivo, * é porque, embora embotado em parte, tem ainda um lado sensivel que o lodo do mundo não pôde manchar. Por isso eu gosto de chorar, e apraz-me, ás vezes, quando estou sósinho, mergulhar o pensamento n'esse passado que já vai tão longe, e pelo poder da imaginação vejo, sinto e goso tudo que vi, senti e gosei n'essa idade de risos e de amores. Minha querida infancia ! H Nasci em... não, não digo o nome do logar onde eu nasci. Para que?... Hoje, na casa em que vi a luz, moram estranhos, e estranhos não sabem nem podem comprehender o encanto que eu achava n'essa pequena casa, para mim mais bella que todos os palacios do mundo. Moram estranhos, e quem sabe? talvez que suas mãos profanas fossem derribar a figueira velha que me vio nascer, e arrancar as roseiras que eu mesmo plantára no canto do jardim! Oh! se eu entrasse agora n'essa casa, estou certo que ao transpôr a porta cahiria de joelhos, e que a minha alma; trasbordando de saudade, havia de romper em um d'esses choros prolongados e sentidos que revelam uma dor profunda. Algumas das recordações vagas que conservo se avivariam então, sanctas reminiscencias do lar me cercariam, e com o rosto escondido nas mãos, suffocado em pranto, julgaria ouvir o ecco de vozes já extinctas e soar de novo a meus ouvidos o canto melancholico com que minha mãe acalentava a irmã pequenina! Não quero entrar n'essa casa; far-me-ia mal... III Nasci no campo, e ao desprender-me das faxas infantis, ao saltar do berço, vi quasi ao mesmo tempo o céo é o mar, os campos e as mattas. Não foi na cidade, onde se morre abafado, não; foi ao ar livre, e infante ainda, senti a brisa da praia brincar com meus cabellos e o vento da montanha trazer-me de longe o perfume das florestas. Que deliciosa vida aquella! Como eu corria por aquelles prados! Que colheita que fazia de flores! Que destemido caçador de borboletas ! Ah! meus oito annos! Quem me dera tornar a tel-os!... Mas... nada, não queria, não; aos oito annos ia eu para a escola, e confesso francamente que a palmatoria não me deiYou grandes saudades. IV Mas o que me acontecia quando eu era pequeno, aquillo vos quero contar, é uma cousa que de certo tem acontecido a todas as creanças e em que bem poucas terão feito reparo. Era uma mulher d'uma belleza extrema e de uma graça encantadora que, sempre coroada de rosas e sorrindo-se ternamente, vinha todos os dias associar-se a nossos folguedos e partilhar nossas alegrias e pesares. Era uma virgem; dizia o a pureza de seus bellos olhos e a suavidade da falla. Apesar de tantos annos, vou tentar 'pintal-a como a vi na infancia. Se o retrato sahir imperfeito e as côres esmorecidas, desculpem-me; a minha palheta não é variada, e ao tocar n'essas paginas do coração, a mão treme e o pincel ennodôa a téla. V Já lêstes aquelle lindo conto de fada que um espirituoso folhetinista escreveu a proposito de Thalberg? Se o lêstes, quasi que conheceis a minha virgem, porque desconfio que ella e a fada eram amigas muito intimas. -Era bella, já vos disse, e não acho com que a possa Uma vestal? Seria! mas seu rosto divinamente bello, nem sempre tinha essa suavidade angelica das vestaes antigas, e seus olhos, segundo ella me disse depois, se umas vezes morriam de voluptuosidade; outras faiscavam de coléra. N'aquelle tempo eu vi-a sempre bondosa, terna e inge nua. Quando ella sacudia aquella cabeça digna da estatuaria antiga, os seus cabellos, seus lindos cabellos louros. presos na fronte por uma grinalda, fugiam e fluctuavam livres em graciosos anneis. Trajava roupas talares, tão alvas, e tão alvas, que todos nós temiamos manchal-as quando as tocavamos. Era muito linda; mas o que eu sobretudo admirava, na minha ingenuidade infantil, era a pureza e o brilho de seus olhos azues, que reflectiam a côr do céo. Como eram bellos! Nas horas de oração, de joelhos a nosso lado, ella erguia esses olhos para Deus e conservava-os assim longo tempo como n'um extasi; então eu via que suspensa de suas palpebras, tremia e brilhava uma lagrima como o cristal no lampadario do templo. E choravamos tambem, e uniamos nossas vozes frescas à sua voz melodiosa, que entoava o cantico da infancia, sublime de simplicidade. A minha virgem vivia sempre cantando; mas fazia-o com tal suavidade, com tal sentimento, que nós, suspensos e immoveis, ficavamos presos a esse doce gorgeio, que nos despertava sensações desconhecidas. |