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VI

-Mas, perguntará o leitor, quem era essa virgem? D'onde tinha vindo?

-Adivinhem. Veio do céo, e quando Deus concluiu o mundo, ella achou-se de pé no meio da creação esplendida, apparecendo em toda a parte e a todo o momento: de manhã ao despontar da aurora, de tarde ao declinar do dia e de noite ao clarão da lua.

Filha do céo, foi formada d'um sorriso do Eterno, brincou com as azas dos cherubins, e no Eden debruçou-se sobre o hombro de Eva, quando a natureza pasmava diante da mais perfeita obra do Creador.

O seu nome, quando eu era pequeno não o sabia; chamava-a unicamente--a Virgem Loura.

VII

Era muito nossa amiga, nunca nos abandonava, e era bello vêr um grupo de creanças, frescas e alegres como um dia de maio, cobrindo de beijos e caricias essa-Virgem Loura-a quem todos chamavam sua irmă.

Se a tarde era linda, se as aguas quietas do rio reflectiam toda a pureza d'este céo brazileiro, se a brisa ciciava na folhagem da mangueira, então corriamos todos para o campo e iamos folgar á beira do riacho. Ahi cada qual colhia flôres; um trazia rosas, outro açucenas, outro boas-noites; e rosas, açucenas, boas-noites, violetas, e todas as flôres da campina, formavam ramos gigantes e formosas grinaldas com que coroavamos a-Virgem Loura.

Cercada de tanto perfume, coberta de tantas flores, parecia um verdadeiro jardim! As folhas de rosas escondidas nas suas tranças douradas cahidas no collo, no regaço, por toda

a parte, diminuiam-lhe a alvura das vestes e a pallidez encantadora do rosto. Mas se lhe davamos flôres, ella pagavanos com beijos.

Outras vezes iamos á praia apanhar conchas, gritavamos com o mar, e o gigante encolerisado bramia e recuava; depois, tranquilla, a onda vinha lamber a areia e fugia murmurando uma queixa.

Se batia o sino-Ave-Marias-ella orava comnosco, e não sei, parecia-me que à oração assim tinha mais valor e que a Virgem Mãe sorria-se satisfeita ás preces da infancia.

Muitas vezes acordando de noite achei a-Virgem Louraá minha cabeceira; anjo da guarda, velava o meu somno de innocencia e velava tambem o das outras creanças, porque ella reproduzia-se e apparecia em mais d'um logar ao mesmo tempo.

Tudo isso fez corn que eu lhe consagrasse uma amizade terna, sancta e profunda, que nada pôde apagar; mas, creio que aos meus companheiros não aconteceu o mesmo. Muitos d'elles, envolvidos no turbilhão do mundo, esqueceram em breve essas 'scenas e esses amores candidos que matizam o alvorecer da vida.

VIII

Passou-se a idade infantil, entrei nos meus quinze annos, e a minha alma de adolescente, opulenta de seiva, rica de sentimento expandia-se livre a todos os affectos nobres e sanctos como a flor da solidão aos raios do sol nascente.

Amei.

E quem deixa de amar aos quinze annos? Quem, se n'essa idade a nossa alma se apaixona tão facilmente? Se não for a uma mulher, hade ser ás flores, ás ondas, a Deus, e debalde perguntamos porque se inclina a nossa fronte languidamente e porque se nos fecham os olhos amortecidos.

Oh! aos quinze annos o coração pede amor como a terra sequiosa pede as chuvas do céo, e como a flôr pendida uma gotta de orvalho. Aos quinze annos, temos necessidade de amar, e os labios que escaldam desejam que os beijos de uma mulher venham matar a sêde que os abraza.

Aos quinze annos amei.

Mas era esse amor puro e candido como nunca mais senti amor que deixou vestigios immorredouros porque foi o primeiro, e que, hoje inteiramente perdido para mim, ainda constitue uma das mais gratas recordações da minha vida.

N'essa época de felicidade intima, em que meu coração novel lia pela vez primeira as paginas d'um livro que nunca havia aberto; n'essa época em que a minha alma cheia de enthusiasmo nadava em ondas de harmonia; n'essa época aVirgem Loura-esteve constantemente a meu lado.

Horas longas e longas, no silencio augusto da noite, inclinada sobre meu hombro, ella murmurava queixumes de amor, e minha mão corria sobre o papel procurando reproduzir o que me fervia na mente.

Fui feliz! muito feliz!

IX

Ás vezes enebriada de tanta ventura, entumecida de tanto goso, a minha alma ardente e apaixonada soltava palavras incoherentes, gritos mesmo, ria e chorava simultaneamente, e não ha palavras que possam traduzir o que eu sentia. Houve então alguem que me chamou poeta.

X

Mas depois... a-Virgem Loura,—voluvel e caprichosa como todas as mulheres, abandonou-me.

Foi n'um dia... lembro-me perfeitamente, foi n'um dia de setembro. Abafando o grito de lamento da minha vocação contrariada, fui sentar-me á carteira d'um escriptorio e embrenhei-me no mundo dos algarismos. Abracei a vida commercial, essa vida prosaica que absorve todas as faculdades n'um unico pensamento, o-dinheiro, e que se não debilita o corpo, pelo menos enfraquece e mata a intelligencia.

Fatal dia! negra hora.

Desde então fugiu-me a-Virgem Loura-e debalde a tenho procurado ao clarão da lua, na luz das estrellas, nas ondas do mar, nas flôres do prado, em tudo; nunca mais a vi!

Hoje a minha alma, arida e triste de tanto sonho dourado e de tanta illusão brilhante, só tem lagrimas para chorar esses bellos dias em que ella me dizia os seus segredos divi

nos.

Ai de mim! parece-me que ouço uma voz pausada e fria murmurar estas palavras de gêlo:-Nunca mais has de encontral-a.

-Mas quem era a-Virgem Loura?

-A de olhos azues?

-Sim.

-Aquella que eu amava?

-Sim.

-Pois não adivinharam?!... Era a-poesia.

FIM

CAMILLA

MEMORIAS D'UMA VIAGEM

Decididamente estamos na epocha dos romances. Está provado que não se pode passar sem elles; todos são necessarios, porque todos são uteis. Uns, deleitam pela suavidade do estillo; outros, são excellentes narcoticos.

Este pertence aos ultimos, e se eu não estivesse convencido de quanta utilidade pode elle ser a um desgraçado que não durma ha tres dias, de certo não o escreveria.

É verdade que incommodo horrivelmente os pacificos cidadãos acostumados ás bellezas de Musset ou de Vigny, de Balzac ou Dumas, mas tenham paciencia: é preciso provar de tudo. Unicamente para não se assustarem dir-lhes-hei que são apenas cinco ou seis capitulos.

Dado este cavaco, que fica servindo de prologo, eu principio.

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