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O ADEUS DO POETA

Ao norte do Rio de Janeiro, um pequeno rio desce da Serra dos Orgãos, e vai perder-se no Atlantico, passando em frente a uma modesta villa. Suas margens são pittorescas; erguem-se pelas collinas restos de matas, que unem à noite o seu doce murmurio com o das aguas que correm rapidas. Ahi o amador da pesca passa tardes de meditação a bordo de sua canôa, resguardado do sol pela sombra das largas folhas das bananeiras, e vendo passar os destroços das florestas na corrente caprichosa do rio.

Em uma de suas margens abre-se a fazenda do Indayassú, por varzeas tapetadas de relva florida, que tem moutas de larangeiras, onde as almas amantes irão repetir os versos immortaes d'aquelle que as cantou.

Na casa de vivenda, em o dia que tractamos, havia o alvoroço d'uma grande novidade. Em um dos corredores interiores, á porta d'um quarto, estavam varias pessoas paradas, com a inquietação na physionomia, e commentando com gestos expressivos o menor-ruido que dentro se percebia. Entrando no quarto, via-se um grupo affectuoso e triste, para o qual se passava talvez então uma das horas solemnes da vida. Sobre um leito singelo, como aquelle modo d'existir do campo, estava deitado um joven de feições meigas, testa harmoniosamente contornada; traços aprofundados pela doença, olhos languidos e internados, e labios emmurchecidos, em que ainda

pairava o ultimo sorriso da jovialidade. Com o corpo apoiado sobre o braço direito, segurando com a mão esquerda, já debil, um livro aberto sobre o aparador proximo, repartia o seu olhar, sereno como um raio de lua no estio, entre as paginas d'aquelle escripto, e uma senhora, que estava em pé junto ao leito, com o rosto entre solicito e afflicto.

Esta dama, em idade mediana, tinha o rosto varonil da verdadeira mãe. e havia no todo energico de suas feições certa força, que não deixava de ter relações com a riqueza intellectual desenhada no rosto do mancebo. Do outro lado da cama, estava um homem de feições menos expressivas, mas benevolentes: calmo, sem a resignação que dá a indifferença, mas seguindo com cuidado reflectido todas as phases d'aquella scena, da qual conhecia as origens, e antevia a fatal consequencia. O homem d'idade era o tie paterno, e a senhora a mãe do joven doente, que os medicos haviam condemnado, e para quem só havia esperança de vida n'aquella affeição materna, que resiste a toda a evidencia.

Vendo sua mãe tão inquieta, o joven tirou da gaveta do aparador alguns papeis, e disse-lhe:

-Já leu estes ultimos versos, que escrevi no recanto da minha serra? Leia os verá que antevejo meu fim sem inquietação; o dia d'amanhã ha de ser bello para mim, quando raiar na eternidade.

-Meu filho, tu has de viver. Não é possivel que Deus te roube à minha amizade, quando podemos viver unidos, ricos e felizes.

-Acredita, pois, que a riqueza foi formada para os desherdados da felicidade, para os sonhadores do ideal? Que nós, os trabalhadores sem paga d'este mundo, que vive pelas ideias, mas amaldiçoa os seus authores, devemos tambem assentar-nos ao banquete social, para recebermos uma parte, embora mesquinha? Engana-se, minka mãe.—Quando me deu o sêr, já eu vinha marcado com o stigma de fogo do destino. Viver por entre os bosques, scismar à noite nas bordas dos navios, passar por entre sorrisos de mofa nas ruas da cidade, e em paga de todos os affectos adquiridos, encontrarmos a indifferença, ou a morte de quem amamos, eis o destino dos poetas. Acredite-me, minha mãe: só ha felicidade para mim, além d'aquelles montes nublosos, que vê através da cortina, e que se vão erguendo até à minha serra querida: e sabe porque? Lá em cima està o céo.

A pobre senhora debulhou-se em pranto, o tio empallide

ceu; o mancebo tomou a mão d'aquella que tanto o queria, e levou-a aos labios. Ella disse-lhe:

-Mas quando tu eras pequeno, nunca te vi triste; corrias pelos campos, subias aos coqueiros, e cantavas alegre ao voltar para casa com algum sabià prêso.

-Lembra-se da minha infancia? Foi feliz, é verdade. Porque não me dá outra vez a Providencia aquella vida da borboleta, que não pára em um só ramo, e não se prende a flor alguma? Correr pelos campos. aspirar o ar fresco da madrugada, ouvir os sabiás trinando o hymno do alvorecer, ir escutar á beira da mata o sussurro dos animaes selvaticos, que saltam de ramo em ramo, é uma vida tão rapida, tão tranquilla para o coração! Mas depois, minha mãe, succede ao alvorecer das manlias, o alvorecer do coração; vem o amor; uns primeiros olhos pretos, umas fallas doces murmuradas á sombra dos coqueiros; e quando a primeira prenda d'amor, o primeiro beijo resôa pelas abobadas de verdura do laranjal, parece-nos que a vida é um canto infindo, que só tem principio no coração, e sempre a elle volta...

Aqui uma tosse cavernosa e estridente atacou o joven; seus olhos perderam por momentos o fulgor; os assistentes apressaram-se a ir buscar uma beberragem, e deram lhe algumas colheres d'ella. O doente voltou-se para sua mãe, e disseThe:

-De-me um beijo, minha querida.

A mãe pousou as faces sobre os labios do filho, e este apertou-lhe a cabeça d'encontro á fronte: depois ergueu-se illuminado por um clarão de poesia; brilhavam-lhe os olhos como estrellas refulgentes em manto negro de tempestade: as palavras melancholicamente accentuadas, tinham a aspiração dolorosa para a felicidade perdida.

-Esconda-me esses versos, minha mãe: não quero reavivar recordações dos ultimos annos. Quem sabe se podia um raio de luz penetrar ainda n'esta selva escura, em que fui buscar a morte? Quem sabe se esgotei antes de tempo o calix da vida? Morrer tão moço, minha mãe; quando cantam as aves n'aquelles coqueiros da varzea, quando aquelle céo azul me está sorrindo nos longes da montanha, como é cruel! como ha falta de piedade para os corações por quem fui amado! A gloria nunca me negára os seus sorrisos d'esperança : quem sabe se amanhã me coroariam de flôres? Quem sabe se havia em minha imaginação um mundo ideial, que iria ennobrecer a patria, que eu tanto amava, e que ainda amo n'esta

hora derradeira! Terra do meu nascimento, e tu querida, que tanto amei, tu sombra amada da juventude, adeus! minha mãe, adeus!

Corrêra a mãe a prendel-o nos braços, e disse-lhe anhelante:

-Não, meu filho, tu não has de morrer agora!

Ergueu a cabeça, um derradeiro sorriso pairou em seus labios, e respondeu :

-Pois é a morte tão temivel?

Depois cerraram-se-lhe os olhos, e a serenidade da paz baixou sobre suas feições.

Perdêra o Brazil um dos seus mais illustres filhos.
Morrêra Casimiro d'Abreu.

REINALDO CARLOS MONTÓRO.

Á MEMORIA DE CASIMIRO DE ABREU

DEDICATORIA DAS POESIAS

DE

ERNESTO CIBRAO

Casimiro d'Abreu era uma d'estas raras intelligencias e heroicas vontades que, voadoras temporas, luctam contra todos os obstaculos do fossilismo e da indifferença, e ganham força na propria lucta.

Poeta creança, como Millevoye, e como elle contrariado pela solicitude da familia,-acabou por triumphar em segredo;e, sem pronunciar o promitto de Ovidio, baixou a cerviz ante o quero da authoridade paterna, erguendo o coração e o pensamento á luz e ao posso do genio. Menos feliz, porém, do que o illustre elegiaco francez, não sahiu das mãos guiadoras e previdentes d'um douto Collenot para entrar no escriptorio de um rábula impertinente, nem viveu trinta e tres annos para cultivar o raro talento e colher o fructo de tantas e tão bellas flores, que lhe brotavam n'alma ardente e apaixonada.

Casimiro d'Abreu, morreu em fins de 1860, aos vinte e um annos de idade, author d'um volume de poesias (1855-1858), das quaes a critica mais severa ha de acceitar muitas como formosas e todas como promettedoras. Sem mestres nem livros, empurrado barbaramente para o positivismo do commercio, Casimiro pendia a bella fronte e em sua quasi ininterrompida meditação não aprendia, adivinhava-como, talvez, não com mais justiça, disse M. de Pongerville do admiravel author do -Amour maternel e de Emma et Égirard.

E assim se fez um poeta, e esse poeta fez um livro,-eloquente protesto contra as mãos sacrilegas que transplantam para os rochedos incendiados, para as brazas petrificadas de S. Vicente, um arbusto mimoso e raro dos jardins Van-Houte

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