Entre abobadas longas, intrincadas, Labyrintos reconcavos e escusos De conceitos agudos predicaveis, De bastardo saber, de engenho vesgo, Ha por cantos escuros, por desvios De sermões requintados do Vieira, Desprezados torrões de ouro encuberto, Que enriquecer mil paginas poderam Por artifices mãos melhor lavrados.
Tem Lucena capitulos tão cheios De lusa preciosissima abastança, Em phraze e termos escolhida e nobre!... Em seu fluido estylo vae Bernardes Serpeando manso e manso até que mana Dos ouvidos nas intimas entranhas, Qual vae claro ribeiro crystallino Debruçando-se puro e saudoso Debaixo de inquietas avelleiras,
Por entre hervosos valles sempre verdes; Té que ao largo se estende em lisa mesa, Espelho e ás vezes banho das serranas. De Barros que direi? que os estrangeiros Não digam mais do que eu? que delle fallam Com mór respeito que fallar usamos. Ferreira, Brito, Souza, Arraes e Pinto Só lhes faltou nascer em terra estranha Para altamente serem conhecidos, E encommendada aos bons sua leitura. Cartilha houvera ser, cartilha de ouro Para a pura dicção da lingua lusa, O mui diserto Freire, ultima c'roa Das nossas litterarias conquistas; Fiel historiador, sempre eloquente, Sempre Plinio, e mil vezes com vantagens. (240) Quanto não ganharia a patria honrada, Não ganharia a lingua portugueza, E os egregios heroes, se cada Cesar, (241) Cada Fabricio, Regulo, ou Camillo, (242) Que deu a lusa terra, conseguisse Um Freire que lhes désse alto renòme Por obras, por virtudes conquistado? Tem senões!-E que auctor é delles limpo!
Não dormitou Homero? O bom Virgilio, Indignado das maculas da Eneida,
Não mandava de novo queimar Troia? (243) Se ás Musas não vedara o pio Augusto
O eterno pranto, e a Apollo as saudades? (244) Pollião não imputa á maravilha,"
Que iam alem de Roma, curiosas:
As gentes ver, defeito patavino? (245)
Abra-se a antiga veneranda fonte Dos genuinos classicos, e soltem-se As correntes da antiga linguagem. Rompam-se as minas gregas e latinas; (Não cesso de o dizer, porque é urgente) Cavemos a facundia que abasteça Nossa prosa eloquente e curto verso. Sacudamos das fallas, dos escriptos Toda a phraze estrangeira, e frandulagem Dessa tinha, que comichona afeia O gesto airoso do idioma luso.
Quero dar que em francez hajam formosas Expressões curtas, phrazes elegantes; Mas indoles diffr'entes tem as linguas; Nem toda a phraze a toda a lingua ajusta. Ponde um bello nariz alvo de neve, N'uma formosa cara trigueirinha; (Trigueiras ha, que as louras se avantajam)» O nariz alvo no moreno rosto, Tanto não é belleza, que é defeito.
Se por força de fado, ou por penuria › Forçados somos a espremer dos livros Francezes o alimento das sciencias;
Se como na palestra empoeirada Vamos luctar contra a ignorancia bruta No gymnasio francez, tomemos o uso Dos antigos athletas, que ao sairem Do pugilato ou férvida carreira, A poeira dos fatos sacudiam,
E banhando-se em liquidas correntes Do Illisso (que, alli perto, com sereno (246) Passeio, alegra as margens estudiosas) Os corpos asseiavam diligentes. Assim vi sempre o litterato Erilo, Depois de revolver francez volume, Desempoar-se da estrangeira phraze C'o espanador de Barros ou Vieira.
'Francisco Manuel do Nascimento-Parnaso Lusitano Paris, 1826-tom. 1.o, pag. 73.
Carta a el-rei D. João III
Sobre obrigações tamanhas Velem-se comtudo os Reis, Dos rostros falsos, das manhas Com que lhe querem das leis Fazer teias das aranhas.
Que se não pode fazer, Por arte, por força ou graça, Salvo o que a justiça quer, Senhor, não chamam poder, Salvo ao que lhes val na praça.
E por muito que os Reis olhem, Vão por fóra mil inchaços. Que ante vós, senhor, se encolhem D'uns gigantes de cem braços Com que dão e com que tothem. Quem graça ante El-Rei alcança,
E hi falla o que não deve,
Mal grande da má privança, Peçonha na fonte lança, De que toda a terra bebe.
Quem joga onde engano vae, Em vão corre e torna atraz, Em vão sobre a face cae, Mal hajam as manhas más, D'onde tanto engano sáe!
Homem de um só parecer, D'um só rostro, uma só fé, D'antes quebrar, que torcer, Elle tudo póde ser,
Mas de côrte homem não é. Gracejar ouço de cá
De quem vae inteiro e são, Nem se contrafaz mais lá, Como este vem aldeão, Que cortezão tornará.
As sanctidades da praça, Aquelles rostros tristonhos, C'os quaes este, e aquelle caça, Para Deus, senhor, é graça, Para nós tudo são sonhos.
E os discursos que fazemos. Póde ser, não pode ser, Mais diante o entenderemos; Agora mortos por ver, Então todos nós veremos. Senhor, hei-vos de fallar (Vossa mansidão me esforça) Claro o que posso alcançar, Andam para vos tomar
Por manhas que não por força.
Por minas trazem suas azes (247) Os rostros de tintureiros,
Falsas guerras, falsas pazes, De fóra mansos cordeiros, De dentro lobos roazes.
Tudo seu remedio tem, Que é assim, bem o sabeis, E ao remedio tambem; Querei-los conhecer bem, No fructo os conhecereis.
Obras que palavras não, Porém, senhor, somos muitos, E entre tanta multidão, Tresmalham-se-vos os fructos, Que sabeis cujos são.
Um que por outro se vende,. Lança a pedra e a mão esconde; O damno longe se estende, Aquelle a quem doe o entende Com só suspiros responde. A vida desapparece, E entre tanto geme e jaz O que caiu, e acontece, Que d'um mal que se lhe faz Outro mór se lhe recrece. Pena e galardão igual, O mundo a direito tem, A uma regra geral,
Que a pena se deve ao mal, E o galardão ao bem.
C'o a mão sobre um ouvido Ouvia Alexandre as partes, Como quem tinha entendido, Por fazer certo o fingido, Quantas que se buscam d'artes. Guardava elle o outro inteiro
Á parte não inda ouvida: Não vae nada em ser primeiro; Quem muito sabe duvida; Só Deus é verdadeiro.
A tudo dão novas côres Como que enleiam os sentidos: Ah! máus! ah! enliçadores! Ante os Reis vossos senhores, Andaes com rostros fingidos! Contaes, gabaes, estendeis Serviços e lealdades: Olhae que não nos damneis,
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