Pagina-afbeeldingen
PDF
ePub

Tão prospero, jucundo, e tão felice.
Cuida como passou em sombra o tempo
Ligeiro, e tão amigo de mudanças.
E quando imaginava estar mais alto,
Viu da mudavel roda a volta dura.
Depois que um grande espaço está pasmado,
Opprimido de dôr o peito enfermo,
Alevanta-se, e vae mudo e choroso
Onde a praia se vê mais opportuna.
Apartando co'as mãos a branca areia,
Abre nella uma estreita sepultura,
Torna-se atrás, alçando nos cansados
Braços aquelle corpo lasso e frio.
Ajudam as criadas as funestas
Derradeiras exequias com mil gritos.
«Ai! duro tempo (dizem) como apartas
Para sempre de nós tal fermosura?»
Na perpetua morada tenebrosa
A deixam levantando alto alarido,
Com salgado licor banhando a terra
Aquelle ultimo vale todas dizem.
Não fica só Leonor na casa infausta,
Que de um tenro filhinho se acompanha,
Que a luz vital gozou quatro perfeitos
Annos, ficando o quinto interrompido.
Alli c'a morta mãe o filho morto,
Ambos com morto amor em terra jazem,
Ella lhe nega o branco amado peito,
E elle o doce, materno, amado gosto.
Ambos na solitaria praia ficam
Junto das grossas ondas sepultados,
Deixando ao mundo um triste raro exemplo
De perversa, cruel, impia fortuna.

O misero Sepulveda rodeia

Os olhos com effeito de saudade,
Em lagrimas desfaz o bulcão turvo
De que assombrado tinha o triste sprito.
Com voz do triste choro embaraçada
Palavras diz de lastima, e piedosas,
Nos braços toma um filho, que alli tinha,
De tenra idade e vista miseravel.
Por estreita vereda entra no matto
De bravos leões, e tigres povoado,

A morte vae buscando, elles doidos
De seu mal lha darão em breve espaço.

Naufragio de Sepulveda, por Jeronymo Corte Real. - Lis-
boa, 1840. Tom. 2.0, pag. 199.

AFFONSO AFRICANO (47) `

CANTO IV

Zara obtem de seu pae perdão para os christãos

Abrem-se as covas horridas e féias,
Tiram-se á luz aquelles innocentes,
Que a rojo dos grilhões, e das cadeias,
Se levam como infames delinquentes:
Param na praça, e nas mais altas vêias
Se enfria o sangue, vendo os diligentes
Ministros, e os cutellos affiados,
Fogos ardendo e vasos preparados.
Mas depois deste abalo temeroso
Da fraca natureza, logo acóde
A sustentar o espirito forçoso

O peso, que um mortal suster não póde:
Respira cada qual, torna animoso,
E da morte o temor longe sacóde,
Offerecendo a vida amada e cara,
A Deus, que só para isso lha emprestara.
Qual diz: «a vida que o tyranno cego
Me tira em sacrificio immundo, e feio,
Tomae, Senhor, em vosso eu vo-la entrego,
Nada temo por vós, nada receio.>>

Qual diz: «Senhor, este meu sangue emprego
Por vosso nome, pois o vosso veiu
Pelo resgate meu, pouco offereço,

Seja a vontade o preço desse preço.»

Quando entra Zara n'um ginete ardente,
Que mastigando o freio em branca escuma,
Tanto que o pezo reconhece, e sente,
Se embrida, e altera mais do que costuma!
Dobrando as mãos a passo continente,
Pelas ventas abertas sopra, e fuma,

Todos se alteram logo, e na estranheza
Os olhos põem do traje, e da belleza.
Não usa os atavios vãos do Paço,
Despreza as ricas joias tão prezadas,
A manga recolhida a meio braço,
As tranças d'ouro ao vento derramadas:
As rossagantes roupas, que embaraço
Fazem, n'um breve nó todas tomadas,
Lançado aos hombros o arco, e a rica aljava,
Com que das feras doma a furia brava.

Tal de Harpalice (48) o traje, quando cansa Os ardentes cavallos na carreira,

Que ao longo do Hebro (49) furioso lança,
Cuja corrente inda é menos ligeira:
Depois que de seu pae favor alcança
A que nasceu do mar, desta maneira
Apparece a seu filho na espessura,
Que errando vae a voltas co'a ventura. (50).
Era Zara o retrato mais perfeito,
Que com mão destra fez a natureza,
Se as condições se vêm do altivo peito,
E juntamente as partes da belleza:
O mundo com seu nome tem sujeito,
Que inda é maior, que toda redondeza,
E se de Christo a fé lhe não faltara,
Pode ser que seu nome ao Ceu chegara.

De mil procos (51) ao pae era pedida,
Sem outro premio igual, em casamento,
Mas tudo desprezava, que na vida
Não ha cousa, que lhe encha o pensamento,
E, dizem, que se tinha offerecida

A vida singular, e casto intento

De Diana e das mais Nymphas da terra
Que pisam trás a caça o valle e a serra.

Neste exercicio alegre, em que se esmera,
O mais do tempo nas montanhas passa,
Seguindo os passos d'uma, e d'outra fera,
Té que a tiro lhe chega, e alli a traspassa:
Ora emboscada entre alto matto espera,
Tendo só para a setta a vista escassa.
Que do arco despedida o cervo prega
Incauto que t'o sangue o campo rega.
Tambem a coço toma o leve gamo,

Tão ligeira trás elle se arremessa,
Depois que o engano c'o vão reclamo,
Áquem acode com ligeira pressa:
Agora aponta ao passaro no ramo
E antes de ser sentida o atravessa,
Ensaio breve, com que a mão se afouta,
Para o porco, que fez dentro na mouta.
Ás vezes enfadada na floresta,

Quando arde a calma, quando o Sol s'empina,
No regaço florido passa a sesta,

E na mão de alabastro a face inclina:
Ora os olhos á fonte clara empresta,
E brincando co'agua cristalina,
A vêia se perturba, e se mistura,
Porque ella se não turbe co'a figura.
Que a ver a image bella n'agua clara,
O lindo aceio, e gracioso riso,
(Se por ventura risse) perigara,
Perdendo-se por si como Narciso:
Mas ella é desta gloria tanto avara,
Que por se não mostrar, turba de aviso
A fonte, que da mesma agua se cia
Lhe fuja co'a figura, pois corria!

Ás vezes co'as donzellas escolhidas,
Que a seguem nesta deleitosa pena,
Debaixo do tecido das floridas
Arvores, danças mil airosa ordena:
Espantam-se das silvas as fingidas
Deidades, e tocando a doce avena,
Os passos com som rustico acompanham,
Porém de longe, que chegar estranham.
Ai! Zara, e que vida esta tão segura
Em bosque fresco de pezares falto,
Onde o maior tumulo é d'agua pura,
Das aves do ar o murmurar mais alto!
Agora, que te apartas da espessura,
Logo encontras com pena, e sobresalto,
Que n'alma suspiraste, quando viste
Tão severo espectaculo, e tão triste.
E sendo então alli certificada

Dos termos, que seu pae c'os christãos usa,
Ficou c'o sacrificio perturbada,

E pela causa delle assás confusa :

E manda, que não seja executada
A sentença cruel, em quanto escusa,
Á piedade, e compaixão movida,
C'o pae uma miseria tão crescida.

Pararam d'improviso os homicidas
Á lei, que lhes pusera, obedecendo,
E a seu mal grado as innocentes vidas
O castigo inventado suspendendo:
Que as palavras de Zara encarecidas
Comsigo sempre imperio vêm trazendo,
Com que o mais fero, e deshumano peito,
Em brandura converte, e faz sujeito.
Os condemnados miseros ergueram
Os olhos tristes para aquella banda,
E a causa de seu bem reconheceram,
Causa em si grande, e grande no que manda:
Foram para fallar, emmudeceram,

Ella os olhou, e seu tormento abranda,
E como já remedio lhes deseja,
Parte a buscal-o porque cedo o veja.

E como o caso compaixão lhe inspira,
Sobr'outra natural, que nella mora,
Ao pae, e Rei, que os braços já lhe abrira,
Estas palavras diz, e entr'ellas chora:
«Se mimosa de vós me não sentira,
Não ousara tentar se o sou agora,
Alcançando, senhor, por magoada,
Perdão para esta gente condemnada. »

«Porque se castigar quereis seu erro,
Assás castigo tem sendo captiva,
Que vida em triste, e misero desterro,
Está tão longe de se chamar viva.
Que antes vida lhe dá o esquivo ferro,
Quando da luz vital, e alento a priva,
Alem de ser tão desusado feito,

Que de nenhum no mundo seja acceito.»

«Quanto mais que n'um tempo que ameaça Pelos mesmos christãos, guerra tão crua,

É perigo, que a todos embaraça,
Terdes contra os de paz a espada nua:
Que se a fortuna prospera os abraça,
A vossa crueldade aviva a sua,
E daes a imigo vencedor motivo,

« VorigeDoorgaan »