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No Arraial de Bom Jesus juntaram-se todos aquelles que sentiam pela terra brasileira um traço de amor: Camarão com os seus indios, Henrique Dias com os seus negros, padre Manoel Moraes, paulista, com os seus fieis, Mathias e Antonio de Albuquerque Maranhão, com os seus parahybanos, familias das fazendas dos engenhos em redor, quasi toda a população expulsa de Olinda, homens, muTheres, creanças, tudo a trabalhar pelo ideal commum - o da defesa do sólo e o da expulsão dos intrusos. E entre essas creaturas que se reuniam no arraial, lá estava Calabar.

Os seus primeiros dias de combatente foram brilhantes. Teve por duas vezes duas feridas em combate. Era valente, sagaz, emprehendedor e habil. Bem pouca gente conhecia como elle os sertões e a costa. O seu valor de soldado, a sua pratica de caminhos, deram-lhe um certo destaque entre os companheiros de luta.

De um momento para o outro, quando menos se espera, eil-o que desapparece do Arraial de Bom Jesus, e surge lá no Recife ao lado dos hollandezes.

As causas da defecção variam em muitos escriptores. Uns affirmam que o mulato alagoano se passou para os flamengos para fugir ás penas dos grandes furtos que fez no arraial. Não está 'apurado isso.

Ha quem diga que o traidor se deixou seduzir peło ouro e pelas honras que os hollandezes offereciam.

mante.

Este é que deve ter sido o motivo predomi

O do patriotismo, como muitos querem, é que não póde ser. Não foi por julgar a Hollanda mais avançada que Portugal que elle se passou para o lado dos flamengos.

E a razão é simples.

Até ao momento da defecção de Calabar, a Hollanda não tinha dado ao Brasil nenhum influxo progressista. Até 1632 a situação dos occupadores de Pernambuco era a mais triste e a mais desesperada. Viviam na faixa de terra do Recife, tendo de um lado o mar que varejavam em desenfreiada pirataria e do outro as emboscadas e as surpresas do Arraial de Bom Jesus. Não passaram dahi. Para o interior não avançaram um passo sequer. As tropas do arraial perseguiam-n'os noite e dia, não lhes consentindo ao menos a agua para beber. Sitiantes viveram como sitiados. Durante dois annos não puderam comer uma fruta dos pomares vizinhos, não puderam encher um pucaro na corrente dos rios. Alimentavam-se de fiambre defumado da Hollanda que lhes traziam os navios e bebiam a agua salôbra das cacimbas á beira mar. Até a lenha, queimavam a que lhes vinha da Hollanda.

Tinham tentado a conquista da Parahyba e do Rio Grande do Norte, com insuccesso total. No Rio Formoso e no cabo de Santo Agostinho ós defensores não lhes consentiram um palmo da terra.

Até 1632 eram simples presidiarios numa estreita fita da terra, perseguidos, atenazados pelos pernambucanos que os iam combater até nas proprias ruas de Olinda e do Recife.

Nem um prego tinham conseguido pôr no Brasil. Não se podia prever que fossem bons colonizadores.

Esse sentimento de patriotismo que muitos dizem ter levado Calabar aos hollandezes é um erro flagrante deante da historia. Se a passagem do traidor se tivesse dado já no começo do governo de Nassau, quando Pernambuco iniciou o seu periodo de esplendor, havia para ella um milhão de defesas. Naquelle momento ella não foi mais do que uma traição, e traição infamissima.

Só o movel do ouro o arrastou.

De um homem daquella ordem estavam os hollandezes á procura. Era evidente a desegualdade entre as forças batavas e as pernambucanas. Todos os dias a Hollanda despejava no Recife navios cheios de tropas e armas. No Arraial de Bom Jesus escasseiavam os braços, escasseiavam as armas, escasseiava tudo. Só a Hollanda não tinha vencido porque não conhecia aquelle genero de guerra, feito por meio de emboscadas e surpresas, no fundo dos grotões e na ramada das arvores. Só não tinha vencido por não conhecer a topographia do interior, os caminhos que levassem com exito aos inimigos. Daria tudo ao homem que lhe apparecesse com aquelles conhecimentos.

Calabar era sagaz. Comprehendeu isso tudo, e aproveitou-se do momento.

Os seus planos não falharam. Os hollandezes receberam-n'o como se recebe um salvador. DeramThe dinheiro e distincções como a mais ninguem. Elevaram-n'o até ao posto de major, e, para cumulo do escandalo, sentavam-n'o nas reuniões do Conselho, como a maior autoridade de assumptos guerreiros.

E dahi partiram todos os successos flamengos. Com Calabar tiveram elles as suas primeiras victorias O traidor conhecia os mais escusos e os mais remotos caminhos, sabia da situação dos exercitos da resistencia, e guiou os usurpadores a todos os triumphos.

Os endeosadores do traidor negam o movel do dinheiro e das honras, affirmando que honras e dinheiro Mathias de Albuquerque offereceu a Calabar e que elle os recusou.

E' verdade que isso se deu. Ao verificar-se o primeiro successo das armas contrarias, Mathias de Albuquerque, comprehendeu que ali estava o dedo de Calabar. Mandou-lhe offerecer dinheiro e mercês valiosas, se voltasse ao arraial. Mas Calabar era

esperto e previdente. Mathias cumpriria a palavra, as mercês ser-lhe-iam dadas, mas o que ninguem podia conter era o ambiente de odio que contra elle existia em Bom Jesus e onde houvesse um inimigo dos hollandezes. Já se tinha dado o ataque de Iguarussú e do Rio Formoso. Os flamengos sairam vencedores e as atrocidades commettidas indignaram Pernambuco e as capitanias em redor. E não havia quem não soubesse que a causa da victoria fôra o traidor alagoano. Em cada familia daquelles teria elle uma indignação accesa. E não attendeu ao chamado do commandante do arraial.

Era natural que assim fizesse. E, para isso, não se fazia necessaria uma intelligencia excepcional, nem patriotismo algum. Bastava o instincto de conservação.

Calabar é, chronologicamente, o primeiro traido que apparece na historia patria. E traidor dos ma's infames. Não se satisfez em passar-se do lado dos seus irmãos para o lado dos inimigos. Foi o guia, o conselheiro, a causa unica das victorias destes contra aquelles. >>

(Do « Correio da Manhã », do Rio de Janeiro, de 6-6-920).

III)-A defesa pelo prof. Assis Cintra

As accusações contra Calabar, ora formuladas em livros, por historiadores apaixonados, ora nas columnis de jornaes e revistas, por investigadores mal orientados, apresentam, sem discrepancia, um mesmissimo aspeito: a pobresa de argumentação e a ausencia de documentos valiosos.

Na actualidade, não se faz mais a historia de um país com ramilhetes de flôres de rhetorica ou affirmações singulares. O espirito moderno exige soberanamente a prova inconcussa e insophismavel do facto para depois sobre elle lavrar o veredictum que consagra ou derroca heroes e reputações collectivas.

Taine, nas << Origines de la France Conteporaine», vulgarizou a nova theoria da critica historica. Do estudo dos archivos publicos e particulares, do manuseio cuidadoso dos relatos dos mestres, da analyse arguta e esmiuçada dos acontecimentos, considerando-se num blóco unico o meio e o homem, resulta a sentença.

Na Alemanha, Onken e Momnsen, e na Inglaterra, Roseberry e Schertteton, não fizeram outra cousa sinão o que fez Taine: collocar acima de tudo a verdade, revelada pela documentação dos acontecimentos. Eis ahi porque a monumental e recente obra de Schertteton (The crimes of England) provocou na propria Inglaterra os calorosos applausos dos competentes. E um membro conspicuo do governo inglês não se pejou de commentar num jornal londrino: << Ha verdades que dóem, mas é preferivel o doloroso da verdade ás blandicias da mentira, mesmo que ellas affectem o nosso innato sentimento de orgulho patrio. E apontar sinceramente os erros de um país, as falhas dum director de homens, as injustiças dos julgamentos sociaes, é obra que só compéte aos fórtes de espirito, a esses que desafiam a rotina. E taes pesquisadores bem merecem capplauso dos estudiosos. >>

Justamente, é contra a rotina historica, é contra a mentira duma affirmação maculante, que já vive ha quasi tres seculos, que nós aqui surgimos, defendendo Calabar. E para destruir uma mentira tri-secular é preciso que o defensor da verdace alumie a consciencia nacional com a argumentação séria e clara das mais robustas provas, ante a qual se esfiapam a rhetorica e o sophisma dos escrevedores apaixonados, dos escravos da tradição.

Camões antevira o soffrimento de sua patria sob o guante dos Filippes. O vice-rei de Portugal, Christovam de Moura, miseravel instrumento da po

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