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NOTAS

AO

PRIMEIRO CANTO DA ODYSSÉA

Verso 1. Musa os trabalhos a cantar me ensina

A traducção litteral seria: Musa conta-me o varão muito ardiloso. Mas é impossivel reproduzir com tanta exacção o original em uma traducção em verso. A proposição da Odysséa foi elogiada por Horacio, como modelo, pela sua modestia e singeleza, e por elle mesmo traduzida resumidamente nos seguintes versos:

Dic mihi Musa virum, captae post tempora Trojae,
Qui mores hominum multorum vidit et urbes :

Arte poetica, v. 141 e 142.

E com mais algum desenvolvimento na Epistola a Lollio, v. 19 a 22.

O poeta grego não invoca nenhuma das musas em particular. No fim do segundo canto da Iliada, antes de começar a Beocia, invoca as musas todas, chamandolhes habitadoras das mansões olympicas, e exprime a causa por que recorre a ellas, dizendo: «Pois vós sois deusas, estaes presentes, e sabeis todas as cousas; emquanto nós outros apenas ouvimos contar os factos, e nada sabemos».

Esta ultima ingenua confissão da ignorancia humana relativamente a acontecimentos antigos, é exprimida com mais verdade, e com muito maior primor por Virgilio na imitação do logar homerico:

Pandite nunc Helicona, Musae, cantusque movete

Et meminisse enim, divae, et memorare potestis.
Ad nos vix tenuis famae perlabitur aura.
Eneida, VII, 741.

Cabe aqui observar que o numero noveno das musas, e o nome de cada uma d'ellas, talvez não pertença aos tempos homericos. Uma só vez (no canto XXIV da Odysséa, v. 60) falla Homero em nove musas, e essa é uma das rasões em que principalmente se fundam os criticos que negam a authenticidade do canto XXIV.

Demais, quando Homero se dirige a musa não lhe pede inspiração no sentido em que hoje tomamos esta palavra: roga-lhe que lhe recorde acontecimentos, aventuras. No tempo de Virgilio, e já seculos antes, a influencia das musas nas obras dos vates era considerada como mais ampla. O proprio Virgilio, que no I canto da sua epopea, dissera, Musa mihi causas memora, e no logar acima allegado do VII,

Et meminisse... et memorare potestis, na ecloga IV espera das filhas de Mnemosyne auxilio de ordem mais elevada.

Sicelides musæ, paulo majora canamus,

Non omnes arbusta juvant, humilesque myricæ.

N'uma palavra, Homero venerava as musas principalmente como filhas da Memoria; os poetas mais recentes imploravam o seu auxilio, considerando-as mais como filhas da Imaginação e dadoras do estro. Emquanto á modestia da proposição da Odysséa, já mencionei acima o juizo do legislador do Parnaso latino. A da Eneida, sem ser tão modesta, nem por isso é arrogante. Muito mais empolada que a do poeta cyclico citada por Horacio, «Fortunam Priami cantabo et nobile bellum», são a da Thebaida de Stacio, e a de Claudiano no seu poema sobre o rapto de Proserpina. A respeito dos nossos dois epicos, Camões e Pereira de Castro, póde dizer-se que, se por um lado parecem ser presumptuosos em seus promettimentos, por outra parte procuraram escapar á censura de arrogantes, resalvando-se, o primeiro d'elles com o verso final da segunda oitava:

«Se a tanto me ajudar o engenho e a arte,»

E o segundo com a limitação (aliás grammaticalmente errada):

«Se eu podesse tanto..

E bem conhecida a applicação que o critico romano faz de uma fabula de Esopo ás proposições nimiamente promettedoras:

Parturient montes; nascetur ridiculus mus.

N'este lanço de pungente satyra o imitou, mas com visos de originalidade, o inimitavel fabulista francez, La Fontaine:

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Homero attribue a victoria dos gregos mais a Ulysses que a nenhum dos outros principes confederados contra Troia. Sem duvida quiz assim dar a entender que para o bom exito da maior parte dos grandes commettimentos mais contribuem o siso, a prudencia, os calculos e operações da intelligencia, do que o arrojo e o valor desacompanhados de circumspecção e conselho. «Vis consilii expers mole ruit suâ» cantou o Venusino. Consideradas as cousas debaixo d'este aspecto, não foi injusto o juizo dos gregos em adjudicarem as armas divinas de Achilles ao ithacense, depois da morte do filho de Peleo; sem embargo da pretensão de Ajaz Telamonico, que á sua posse parecia ter direito pelo sobre-humano valor de que dera tão admiraveis provas.

Verso 10. Mas por salvá-los forcejou debalde

Homero falla aqui particularmente dos quarenta e quatro companheiros que tinha no seu navio nos ultimos tempos das suas peregrinações, pois só esses comeram os bois do sol. Os outros haviam perecido em outras occasiões e por modos differentes.

Verso 11. Morte lhes foi seu proprio desatino

Com estas palavras, diz a sr.a Dacier, Homero assignala uma differença essencial entre a Iliada e a Odysséa. Na Iliada o povo é victima dos desatinos dos reis:

«Quidquid delirant reges, plectuntur Achivi»

(Hor., Epist. ad Lol., v. 14.)

Na Odysséa, o povo perece em resultas da propria insensatez, pois o seu principe não poupara alvitres e esforços para o salvar de innumeraveis perigos. Por isso a leitura da Odysséa é mais proveitosa ao povo que a da Iliada.

Verso 37. Paiz entre dois povos dividido

O Nilo corta a Ethiopia em duas partes, ficando uma d'ellas ao oriente, outra ao occidente. Consulte-se Estrabão, no livro I da sua Geographia, pag. mihi 57, e no livro II, pag. 162, onde se explica amplamente este logar da Odysséa.

Verso 46. Que lembrado de Egistho

Egistho, principe de illustre prosapia, foi deixado por Agamemnon junto de sua esposa Clytemnestra, quando saiu para Troia a expedição dos gregos para vingar o rapto de Helena. Por algum tempo prestou leal serviço à rainha; mas depois a seduziu; e quando Agamemnon regressou victorioso, ella e o adultero aleivosa e barbaramente o trucidaram. Este crime e os factos que se lhe seguiram são o assumpto da Orestiade de Eschylo, isto é, das tres tragedias intituladas Agamemnon, as Choephoros e as Eumenides, sublime e unica trilogia completa que nos resta da antiguidade classica. N'este logar da Odysséa applica-se a Egistho o epitheto avov, que não me atrevi a inserir na traducção, e que significa ordinariamente irreprehensivel. É verdade que pode ser tomado aqui na simples accepção de nobre, illustre ou formoso. Mas entre nós soaria mal qualquer appellido honorifico applicado a um grande criminoso, adultero e assassino.

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N'esta queixa de Jupiter se acha lançado um dos fundamentos da theodicéa, tomando o vocabulo theodicéa na sua accepção genuina e etymologica; vocabulo este muito usado em philosophia, principalmente depois do grande Leibnitz. Leiamse as duas eruditas notas de Clarke e de Ernesti a este logar (edição de Lipsia, 1760) onde se acha citado um grande numero de doutrinas e sentenças de philosophos e de poetas relativas ao momentoso assumpto. Emquanto à antiquissima injustiça dos homens que pretendem desculpar-se de seus crimes allegando irresistiveis influen

cias do destino, o suavissimo Metastasio a rebate, pondo na boca de um anjo estas palavras dirigidas a Cain, na oratoria intitulada Abel:

«Cogli astri innocenti,

Col fato ti scusi,

Ma senti che abusi

Di tua libertà:

E copri con questa
Sognata catena
Un dono che pena
Per l'empio si fa!»

O fado innocente,

Os astros accusas;
Mas olha que abusas

Do livre querer.

Est' é dom divino,

Que os impios costumam,

Por seu desatino,

Em pena volver.

Verso 71. Quem laes obras fizer, tal fim encontre

Refere Plutarcho (na vida dos Gracchos, Tiberio e Caio) que, quando Seipião Africano ouviu, estando em Numancia, a noticia da morte de Tiberio, immediatamente repetiu o verso homerico Ως απόλοιτο και αλλος στις τοιαυτα γε ρέζου!

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Hesiodo na sua Theogonia, v. 359, diz que Calypso era filha do Oceano e de Tethys. Qual seria a mais antiga d'estas duas tradições, uma adoptada por Homero, outra consagrada pelo poeta Ascreu? Consulte-se a dissertação do doutissimo Letronne: Essai sur les idées cosmographiques qui se rattachent au mont Atlas; inserida no Bulletin des sciences historiques, tom. XVII.

Ao velho Atlante, ou ao monte a que elle deu o nome, allude o nosso Camões em tres logares dos Lusiadas: no canto 1, estancia 20; no canto I, estancia 77, e finalmente na ultima estancia do poema.

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Dion Chrysostomo (no discurso XIII) seguindo o parecer de não poucos escholiastes, dá ao texto a seguinte interpretação: «Ulysses deseja ver fumegar de longe us telhados da sua cidade natal, ainda que logo depois haja de morrer». Se se adoptar a interpretação do eloquentissimo orador, poder-se-ha exprimir assim em verso:

... só deseja

Ver fumegar de longe os patrios tectos,
Depois á etherea luz cerrar os olhos.

Seja porém qual for das duas interpretações a preferivel, cumpre confessar ser esta a mais notavel pintura poetica de quanto póde o amor da patria em um coração bem formado. Cicero alludiu a este logar da Odysséa, quando, encarecendo a força d'este nobre e dulcissimo affecto, se exprime assim: Nostra patria delectat; cujus rei tanta est vis, ac tanta natura, ut Ithacam illam in asperrimis saxulis, tanquam nidulo affixam, sapientissimus vir immortalitati anteponeret (De Orat., lib. 1). Ácerca da inamenidade e pouca importancia da ilha de Ithaca, uma das do mar Jonio, hoje Theaki, transcreverei aqui, traduzindo-a, uma nota ao canto II, estancia 39 do Child Harold's Pilgrimage de Lord Byron:

«No dia 24 de setembro, diz mr. Hobhouse, nós nos achavamos no canal, tendo ao poente a ilha de Ithaca, que estava então em poder dos francezes. Estavamos a pequena distancia d'ella, e divisámos alguns arbustos em um terreno pardacento e abrasado, duas pequenas villas nos oiteiros, todas rodeadas de arvoredo, um ou dois moinhos de vento com uma torre nas alturas. A tal Ithaca não tinha certamente uma forte guarnição, como bem o supporeis quando eu vos contar que, um mez depois, quando as ilhas Jonias foram atacadas por uma esquadra ingleza, ella se rendeu, entregando-se a um sargento e sete soldados. >>

Relativamente ao instinctivo amor da patria, ainda quando ella seja inamena, miseravel e inculta, leiam-se e releiam-se as aureas paginas de Chateaubriand, Genio do Christianismo, livro v, capitulo 14.°

Verso 148. Seguem, jogando aos dados, seus folguedos

Traduzi jogando aos dados, á mingua de expressão mais exacta. No original está: mo, que os escholiastes dizem serem umas pedrinhas cubicas. Os francezes costumam verter dés; outros porém traduzem osselets. Nas traducções latinas achámos: talis (proci) se oblectabant.

A respeito do jogo de que se falla n'este logar, consulte-se a erudita nota da sr.a Dacier.

Verso 169. Sáe a busca-lo, sem delonga

Na Odysséa é que principalmente se acham exemplos da hospitalidade tão pathetica e tão primorosa dos tempos patriarchaes entre os povos semiticos, e dos tempos heroicos na Grecia primitiva; hospitalidade a cujo respeito já disse alguma cousa em uma nota ao VI canto da Iliada. Leiam-se a Viagem do joven Anacharsis, a pag. 57 da introducção, e o Deipnosophista de Atheneu, livro V, pag. 185.

Verso 195. Pão e manjares põe em grande copia

Se a despenseira trouxe para o banquete pão e manjares que tinha debaixo de sua guarda, para que veiu depois o cozinheiro com novas iguarias? perguntam alguns criticos nimiamente minuciosos. Segundo a explicação de Eustathio, a despenseira poz na mesa pão e provisões que estavam em reserva, por exemplo, assados frios; o cozinheiro viandas acabadas de preparar.

Verso 252. Buido ferro a Temeso levando

Duas cidades com o nome de Temeso são conhecidas na antiguidade, uma pértencente aos Brucios na baixa Italia, outra na ilha de Chipre.

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