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nos animos juvenis, não uma esteril admiração, mas um louvavel desejo de formar ou de reformar o proprio gosto litterario; taes são as principaes obrigações que me são impostas para o desempenho das honrosas funcções do meu novo cargo na republica das letras.

Para que n'ellas me haja de estrear sob favoraveis auspicios, cumpreme não omittir uma reverente invocação, e um cordeal agradecimento.

Primeiro que tudo invoco portanto as bençãos do Altissimo sobre estės nossos estudos. Poder-me-ia eu envergonhar, christão, perante um auditorio christão, de prestar aqui esta homenagem de absoluta submissão e de filial confiança ao Ser Supremo, que, em mysteriosa revelação ao apostolo exilado em Patmos, a si proprio chamou, usando de uma imagem tirada do alphabeto da mais bella das linguas, Alpha e Omega, principio e fim de todas as cousas? Pelo contrario, tendo eu de fallar d'aqui a pouco de Orpheo, de Arato, de Virgilio, ser-me-ía desdouro, se agora me não recordasse do fragmento orphico tão celebrado nas antigas escolas philosophicas: «Jupiter é o ser primeiro, Jupiter o ultimo, Jupiter o medio; de Jupiter todas as cousas procedem, Jupiter é rei, Jupiter é o dominador universal»: se (substituindo o nome mythologico de Jupiter pelo sacrosanto de Jehova, o verdadeiro Deus uno e trino) não vos repetisse com o vate astronomo de Solos: Ex Atos apyuta, e com o principe dos poetas latinos: «Que primeiro a Mantua trouxe as palmas idumeas: A Jove principium.... Joris omnia plena».

Com effeito aquelle espirito, increado e creador, que inspirou Moyses, o mais antigo dos historiadores, e o mais sabio dos legisladores; que temperou as cordas da harpa do propheta rei; que dictou paginas sublimes a Isaias e a Ezechiel, maviosos threnos a Jeremias; que pela penna de Salomão e de Jesus, filho de Sirach, aditou os filhos da synagoga, e ainda hoje os filhos da igreja, com uma preciosa collecção das mais puras e profundas maximas, moraes e religiosas, tambem, na ordem natural, é fonté de luz, dador do engenho, e em variadissimas proporções, segundo os arcanos da sua providencial economia, distribuidor de todos os dotes do entendimento, em summa, auctor de todo o bem, e eterno archetypo de tudo o que é bello, magestoso e sublime, inspirador e fautor de todas as tentativas uteis, e de todo o verdadeiro progresso.

Todos vós, senhores, que estaes presentes, assim como me havereis acompanhado no sentimento de religiosa piedade, exprimido nas poucas regras que acabo de ler, tambem commigo estaes sem duvida identificados emquanto ao sentimento de gratidão para com o augusto soberano, a cujo zelo pelos progressos na cultura intellectual da mocidade portugueza se deveu o primitivo designio da creação d'este curso, e por cuja munificencia foram subministrados os meios necessarios para começar a realisar-se tão proficuo pensamento.

É verdade que muitas vezes se prodigalisa immerecido incenso aos grandes, e principalmente aos principes e aos monarchas. Mas deverá por isso condemnar-se, como filha da adulação, toda a publica manifestação de reconhecimento, ao receber-se de alguma de taes personagens um valioso e publico beneficio? O mais que se pode fazer para escapar a qualquer censura, é evitar as hyperboles, e as estudadas amplificações. No presente caso, em vez de quaesquer, aliás merecidos, encomios, devendo elevar até os degraus do throno do senhor D. Pedro V as homenagens da nossa gratidão e do nosso acatamento, contentar-nos-hemos com dirigir a Sua Magestade expressões. tiradas da grande epopéa latina:

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e acrescentaremos, sem receio de sermos desmentidos pela posteridade: «Semper honos, Nomenque Tuum, laudesque manebunt. »

Agora, estudiosos mancebos, releva dizer-vos alguma cousa (de relance, porque a vossa perspicacia supprirá a minha deficiencia) acerca da vantagem que da frequencia d'este curso vos ha de resultar: por onde, melhor conhecida e ponderada a importancia do beneficio, hajaes de avivar em vós mesmos os ingenitos brios, empregando todos vossos esforços, para d'elle cabalmente vos aproveitardes; o que será sem duvida alguma o melhor modo de patentear o vosso reconhecimento a Sua Magestade o excelso, illustrado e zelosissimo promotor da publica instrucção em todos os graus e ramos em que ella costuma dividir-se, e augusto creador e patrono d'este curso superior, cujas aulas acabam de abrir-se em vosso proveito.

Nem ainda rapidamente encarecerei o subido interesse que achareis no estudo da historia geral, e particularmente da portugueza, nem a importancia e amenidade do estudo da litteratura moderna, especialmente da nacional, que são o objecto do ensino da primeira e da terceira cadeiras do nosso curso. Muito melhor se desempenhará d'esta, como de todas as outras suas tarefas, o sr. Luiz Augusto Rebello da Silva, professor proprietario da primeira das ditas cadeiras, e que, para não se retardar mais a abertura das aulas, com muito louvavel dedicação, se offereceu a substituir por algum tempo o nosso collega actualmente impedido de reger a terceira.

Sómente ácerca da litteratura classica antiga me proponho offerecervos, illustres e benevolos alumnos, algumas considerações, tendentes a mostrar-vos a sua utilidade; e para que ellas façam maior impressão no vosso animo, invocarei o testemunho de alguns sabios, cuja auctoridade em tal materia é acatada na Europa inteira, Anhelando anciosamente por

inspirar-vos um entranhavel affecto ao menos aos summos entre os grandes escriptores gregos e latinos, quasi não posso defender-me de um sentimento de inveja, mas inveja não filha de um vituperavel amor proprio, senão do vivo desejo que tenho de vos ser agradavel e proveitoso. N'esta mesma cadeira em que hoje me estaes vendo assentado, vistes hontem, vereis amanhã, e successivamente, um sabio professor, um escriptor lido com tanto gosto, com tanta rasão applaudido. Ouvistes e ouvireis sair de seus labios um eloquio fluente, abundante, harmonioso. Docemente attrahidos pelo encanto da sua facundia, o ireis seguindo gostosos, ainda quando (o que elle de certo não fará, porque ha de de forrar-vos a quanta fadiga não vos haja de ser absolutamente necessaria), ainda quando, digo, houvesse de embrenhar-se nas mais difficeis investigações, e convidar-vos a penetrar nos escuros labyrinthos da critica para apurar a verdade ácerca de factos duvidosos ou mal avaliados. E commigo o que succederá?

«Il n'est point de serpent, ni de monstre odieux,
Qui, par l'art embelli, ne puisse plaire aux yeux.■

disse judiciosamente Boileau.

Em contraposição a esta sentença do legislador do Parnaso francez, bem poderia dizer-se que o assumpto mais ameno, tratado com desprimor e impericia, ha de produzir enfado e desplicencia. E este é o meu receio. Em tal descoroçoamento só me vigora uma consideração, e vem a ser, que o meu mister n'estes exercicios quasi se limita ao de um guia que se propõe conduzir-vos a contemplar de mais perto monumentos, de alguns dos quaes talvez só tenhaes uma vaga noticia. Bem quizera eu, para suavisar-vos a fadiga da viagem, conduzir-vos por caminhos planos e deleitosos; não me é dado esperal-o; mas fico-vos, que, se não desanimardes, chegados ao termo, dareis por bem empregados o tedio e incommodos da peregrinação.

Sim, bem empregado, mil vezes bem empregado é o trabalho a que temos de sujeitar-nos para travar conhecimento com aquelles genios immortaes, que têem sido o objecto de universal admiração, de concordes elogios, de geral applauso, durante milhares de annos, e a leitura de cujas obras ha sido estudo e delicias dos engenhos mais eminentes em todos os seculos e em todas as nações, apesar da mudança das crenças religiosas, e das instituições politicas, e sem embargo da diversidade dos costumes e usanças dos povos civilisados.

É verdade que, no meio do geral concerto de vozes èm louvor dos auctores classicos, e em favor do seu estudo, como parte da publica e particular instrucção, quasi indispensavel para formar o bom gosto, e servir de seguro criterio nas questões de esthetica litteraria; é verdade,

digo, que algum brado se ergueu em contrario sentido, nos fins do seculo XVIII. Não é menos verdade, que ainda no actual se ouvem alguns echos d'esse brado, que en não duvidarei chamar profano, e quasi sedicioso, no santuario de Minerva, e na republica das letras. Para não ser demasiadamente diffuso, nada direi dos poucos escriptores de alguma nomeada, que no seculo passado se alistaram em uma especie de gaziva contra o culto das musas classicas. Emquanto aos raros detractores d'ellas, contemporaneos nossos, folgo de repetir-vos em seguida as conceituosas expressões de um distincto litterato francez, o sr. A. Bignon:

Em nossos dias a litteratura antiga foi atacada pelos ultras do romantismo, como demasiadamente classica, e pelos ultras do catholicismo, como demasiadamente profana. Se houveramos de lhes dar ouvidos, ella paralysaria a arte, corromperia a moral, mereceria que de toda a parte se lhe bradasse: Anathema! Porventura succumbiu ella? Pelo contrario, parece ter medrado. Os antigos auctores gregos e latinos, em resultado da feliz inhabilidade dos novos iconoclastas, viram crescer o numero de seus proselytos. Os criticos de atilado gosto, bem longe de os votarem aos deuses infernaes, continuaram a adoral-os com fervor, mas sem fanatismo. Os classicos gregos e latinos, objecto de um culto racional, carearam a estima de amigos intimos, e acharam interpretes mais concienciosos.» (Journal des Débats de 20 de novembro de 1860.)

Ouçamos quasi sobre identico assumpto uma voz, se é possivel, ainda mais auctorisada, o sr. Villemain:

« A melhor resposta aos escrupulos e aos sophismas que se hão suscitado em nossos dias contra a educação classica, e em parte contra o estudo das linguas grega e latina, seria sem duvida o robustecer este estudo e tornal-o tão completo quanto o permitta o emprego dos annos da mocidade. Se quereis que a nação franceza não decáia em ponto algum do alto logar que occupa entrè as nações civilisadas; que nunca venha a ter uma religião menos illustrada, uma sociedade menos forte e menos culta, um corpo de magistratura menos elevado, profissões sabias menos acreditadas na Europa, não enfraqueçaes, nem por negligencia, nem por systema, aquella instrucção a que se dava o nome de estudo de letras e de humanidades. Não haveria cousa alguma que fosse capaz de substituir esta primeira cultura; o pretendido progresso, que a tem em menos preço, é uma verdadeira decadencia.» (Journal des Savans, de setembro de 1859.)

Que poderia eu, de propria lavra, acrescentar ao que sobre a importancia dos estudos classicos, disseram os citados a dois sabios francezes, que têem por seus escriptos grangeado uma distincta celebridade no mundo litterario? O douto, elegante, eloquente, professor Villemain, não menos acreditado como estadista e como polidissimo escriptor, exhorta calorosa

mente aos seus nacionaes à cultura d'estes estudos, fazendo-lhes entrever que a negligencia n'esta parte da instrucção obscureceria algum tanto o brilho de um povo que a todos os respeitos campeia entre os mais policiados e illustres da sociedade moderna. O sr. Villemain, que pertence a uma nação, cuja litteratura, entre as opulentas opulentissima, é hoje a mais universalmente estudada, saboreada, preconisada, agouraria mal da duração de tamanha gloria, se entre os seus compatriotas, que o são de Corneille, de Racine, de Malherbe e Boileau de Bossuet e de Fénélon, de Lamartine e de Cousin, se entibiasse o até agora fervoroso culto consagrado aos semideuses litterarios da Grecia e de Roma, a Homero, a Pindaro, a Demosthenes, a Sophocles, a Platão, a Virgilio, a Horacio, a Cicero, a Sallustio, a Tacito!...

Que diremos nós os portuguezes? Minor est nobis, sed bene cultus ager. Proporcionadamente ao nosso territorio e á nossa população, tivemos, e temos, um consideravel numero de escriptores, poetas e prosadores, que se abalisaram e se abalisam em differentes especies de composições. Ora o periodo mais brilhante da nossa litteratura (como melhor se vos fará conhecer em outra, muito melhor regida cadeira d'este curso) foi justamente aquelle em que entre nós se prestou a maior attenção ao estudo das linguas sabias. Lembrarei sómente a escola da côrte do Senhor Rei D. Manuel, onde, como é notorio, recebiam a instrucção classica os mancebos nobres conjunctamente com os principes da real familia; escola de que saíu mais de um elegante escriptor, e signaladamente immortal auctor das Decadas da Asia, cognominado Tito Livio Portuguez. N'aquelles bons tempos antigos até uma princeza, a Infanta D. Maria, roubando algum tempo aos delicados lavores do seu sexo, se deliciava na leitura de escolhidos auctores gregos e latinos, familiarisada com as linguas originaes, sob o magisterio da virtuosa e doutissima Luiza Sigêa.

Ninguem ignora os serviços prestados ao progresso intellectual de nossos maiores pelo sabio Ayres Barbosa, discipulo de Angelo Policiano, e professor, durante quatro lustros, na universidade de Salamanca; por Achiles Estaço; pelos conegos regrantes D. Heliodoro de Paiva e D. Pedro de Figueiró; e por outros varões consummados em erudição, alguns dos quaes, no collegio das artes em Coimbra, substituiram os sabios estrangeiros Gruchio, Buchanan, Patricio Scoto, Arnaldo Fabricio. Todos estes varões sapientissimos eram profundamente versados na classica erudição, e d'ella faziam a base da instrucção que ministravam a seus discipulos. E logo após elles, ou contemporaneamente com elles, enriquecidos pela sua doutrina, assiduos cultores da classica antiguidade, viram-se florescer os Bernardes, os Ferreiras, os Arraes, e um poeta que só vale por muitos ou por todos, Luiz de Camões, cujo estudo da Eneida transluz em todos os cantos dos Lusiadas, e que, em mais de um logar da mesma

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