Que tudo o tempo gastava, Da tristeza que tomei, Nos salgueiros pendurei Os orgãos com que cantava. Aquelle instrumento ledo Deixei da vida passada, Dizendo: Musica amada, Deixo-vos neste arvoredo Á memoria consagrada.
Frauta minha, que tangendo Os montes fazieis vir
Par' onde estaveis, correndo; E as ágoas, que hião descendo, Tornavão logo a subir;
Jamais vos não ouvirão Os tigres, que s'amansavão; E as ovelhas, que pastavão, Das hervas se fartarão, Que por vos ouvir deixavão.
Ja não fareis docemente Em rosas tornar abrolhos Na ribeira florecente;
Nem poreis freio á corrente,
E mais se for dos meus olhos.
Não movereis a espessura,
Nem podereis ja trazer Atraz vós a fonte pura; Pois não pudestes mover Desconcertos da ventura. Ficareis offerecida
Á Fama, que sempre vela,
Doce canto em terra alheia? Como poderá cantar
Quem em chôro banha o peito? Porque, se quem trabalhar Canta por menos cansar, Eu só descansos engeito. Que não parece razão, Nem sería cousa idonia,
Por abrandar a paixão
Que cantasse em Babylonia As cantigas de Sião.
Que quando a muita graveza De saudade quebrante
Esta vital fortaleza,
Antes morra de tristeza, Que por abrandá-la cante. Que se o fino pensamento Só na tristeza consiste, Não tenho medo ao tormento: Que morrer de puro triste, Que maior contentamento? Nem na frauta cantarei O que passo, e passei ja, Nem menos o escreverei; Porque a penna cansará, E eu não descansarei.
Que se vida tão pequena S'accrescenta em terra estranha; E se Amor assi o ordena,
Razão he que canse a penna D'escrever pena tamanha.
Porém, se para assentar O que sente o coração, A penna ja me cansar, Não canse para voar A memoria em Sião. Terra bem-aventurada, Se por algum movimento D'alma me fores tirada, Minha penna seja dada A perpétuo esquecimento. A pena deste destêrro, Qu'eu mais desejo esculpida Em pedra, ou em duro ferro, Essa nunca seja ouvida, Em castigo de meu êrro. E se eu cantar quizer Em Babylonia sujeito, Hierusalem, sem te ver, A voz, quando a mover, Se me congele no peito; A minha lingua se apegue Ás fauces, pois te perdi, S'em quanto viver assi Houver tempo, em que te negue, Ou que m'esqueça de ti.
Mas ó tu, terra de glória,
S'eu nunca vi tua essencia, Como me lembras na ausencia?
Não me lembras na memoria,
Senão na reminiscencia :
Que a alma he taboa rasa,
Que com a escrita doutrina Celeste tanto imagina, Que vôa da propria casa, E sobe á patria divina. Não he logo a saudade Das terras onde nasceo A carne, mas he do Ceo, Daquella santa Cidade, Donde est' alma descendeo. E aquella humana figura, Que cá me póde alterar, Não he quem se ha de buscar; He raio da formosura,
Que só se deve d'amar.
Que os olhos, e a luz que ateia
O fogo que cá sujeita,
Não do sol, nem da candeia, He sombra daquella ideia, Qu'em Deos está mais perfeita. E os que cá me captivárão, São poderosos affeitos Qu'os corações tee sujeitos; Sophistas, que m'ensinárão Maos caminhos por direitos. Destes o mando tyrano M'obriga com desatino A cantar ao som do dano Cantares d'amor profano, Por versos d'amor divino. Mas eu, lustrado co'o santo Raio, na terra de dor,
De confusões e d'espanto
Como hei de cantar o canto, Que só se deve ao Senhor? Tanto póde o beneficio Da graça que dá saude, Que ordena que a vida mude: E o qu'eu tomei por vicio, Me faz grao para a virtude; E faz qu'este natural
Amor, que tanto se préza, Suba da sombra ao real, Da particular belleza Para a belleza geral. Fique logo pendurada A frauta com que tangi, Ó Hierusalem sagrada, E tome a lyra dourada Para só cantar de ti; Não captivo e ferrolhado Na Babylonia infernal, Mas dos vicios desatado, E cá desta a ti levado, Patria minha natural.
E s'eu mais der a cerviz
A mundanos accidentes,
Duros, tyrannos e urgentes, Risque-se quanto ja fiz Do grão livro dos viventes. E, tomando ja na mão
A lyra santa e capaz D'outra mais alta invenção,
« VorigeDoorgaan » |