dos barbaros, ensinava-se-lhes a portugueza, e facilitava-se por este theor a prégação e a doutrina. Fundavam-se escholas e collegios para os orphams portuguezes, e meninos indios, e por estes domavam-se e convertiam-se os paes, que depunham toda a esquivança, vencidos da innocencia daquelles pequenos e gentis missionarios, transformados pela religião em mestres dos grandes. Esses collegios, que por uma approximação tocante se chamavam do menino Jesus, não passavam em verdade de humildes choças, ou na cidade, ou já no campo entre as aldeas dos cathecúmenos. Os meninos, além de transmittirem o conhecimento da lingua e da doutrina aos gentios adultos, exercitavam certos officios religiosos, ajudando ás missas, assistindo aos moribundos, e convertendo-os até algumas vezes. Sabiam tambem em procissões, entoando ladainhas e outros canticos sagrados, com que levavam apoz si os olhos, os ouvidos e os corações. «Assim, diz Chateaubriand, «cantam tambem os passarinhos adestrados para at«trahir ás redes do caçador os ariscos e bravios. >> Aos meios brandos e suaves, juntavam-se os meios violentos e terriveis. Se não bastavam para prender as almas as pompas e apparatos das ceremonias, as graças ingenuas da infancia, e os encantos da musica, travavam dellas com espectaculos de outro genero, disciplinando-se os missionarios até tingirem as vestes, e ensoparem a terra com o proprio sangue. Combatidos incessantemente, e por todos os lados, abran dava-se e rendia-se emfim o endurecido selvagem. Foi com espantosas flagellações destas que o P. João de Aspicuelta Navarro conseguiu desterrar d'entre os indios já christãos o costume de comerem carne humana, em que estavam tam enraizados. A liberdade dos indios desafiou tambem a attenção e zelo dos padres, e lhes foi occasião de não pequenos trabalhos desde os primeiros tempos. Achamos escripto em algumas memorias que a escravidão legal dos indios no Brazil data do anno de 1557, no qual por uma provisão régia foram os cahetés, e seus descendentes, sem distincção de sexo ou idade, condemnados a perpetuo captiveiro, em vingança da guerra encarniçada que haviam feito aos portuguezes, e da fereza com que devoraram o primeiro bispo D. Pero Fernandes Sardinha, e mais cem desgraçados companheiros que com elle haviam naufragado em uma costa deserta. Não podemos achar o texto desta lei; mas já antes dessa épocha, a escravidão existia de facto, e á chegada dos primeiros jesuitas, já elles a encontraram estabelecida, bem como o commércio denominado de-resgates-que era a tróca de índios prisioneiros e destinados á morte, por objectos de infimo valor. Posto não houvesse leis escriptas para regular a materia, contudo por uma especie de consenso, e convenções tacitas, de que em 1558 fez o governador Mem de Sá um regulamento, já se distinguiam os captiveiros justos dos injustos. Acudiam os padres não só pela liberdade dos indios injustamente captivados, senão em defeza dos escravos maltractados. Bem cedo rebentaram as desavenças por esta causa, mormente em S. Vicente; e houve tal senhor, duro e deshumano que, impacientado e mal soffrido das rasões dos padres, chegou a levantar um páu para maltractar o P. Leonardo Nunes. Este, porém, com mais serenidade e galhardia que Themistocles, ajoelhou-se, offereceu a cabeça ao golpe, e continuou a afear e exprobrar o crime e o vicio. Corrido de vergonha, o aggressor sosteve o braço, e retirou-se, Estes actos de violencia se repetiram por vezes, e algumas degeneraram em motins. Entre os inimigos da companhia assignalou-se um João Ramalho, antigo morador de S. Vicente, onde cobrara fama assim pelas riquezas como pelos vicios, sendo que por viver amancebado cerca de quarenta annos, andava de ordinario excommungado, e tolhido de frequentar as igrejas. Este costumava sahir á rua seguido da numerosa caterva dos filhos, bastardos mamelucos, gente ruim e desalmada, que se derramavam a fazer alvorotos, e a injuriar e calumniar os padres. A maioria porém da população os amava e defendia, pois se por uma parte os missionarios reprehendiam e reprímiam os vicios e os crimes com inteireza e energia, pela outra procuravam desarmar as paixões irritadas, com a brandura e humildade das palavras e maneiras, e com a alta prudencia e desinteresse de todo o seu procedimento. Á proporção que crescia o numero dos operarios, alargavam-se os trabalhos da missão. Em 1553 chegara ao Brazil como já dissemos, a terceira cohorte desta sancta milicia, pequena e debil, se attendermos só ao numero, mas grande e poderosa pelo esforço e pela dedicação. O P. Nobrega foi então nomeado, por patente, provincial do Brazil, separado da provincia de Portugal, dando-se-lhe por collateral no governo o P. Luiz da Grãa, que viera na mesma occasião com o veneravel Anchieta. Com a chegada deste poderoso soccorro intentou Nobrega a fundação de um collegio nos campos de Piratininga, situação vantajosa a muitos respeitos; pela visinhança do mar e do porto de S. Vicente, distante apenas umas dez ou doze leguas; pela salubridade do clima; e pela fertilidade do terreno; e não menos por ser ali o centro das aldeas de innumeravel gentilismo. Ouçamos a descripção que destas campinas e serranias faz o P. Simão de Vasconcellos, se exagerada, talvez por isso mesmo mais brilhante e encantadora. Estes padres, a tantos outros dons do ceo, reuniam ás vezes o da poezia. «Estes campos (diz no L. 1.o da Chronica da Com«panhia) merecem o nome de elyseos ou bem afor«tunados, assim pela ventura que lhes coube de que «fossem elles o primeiro seminario da conversão da «gentilidade daquellas partes, e o maior de toda a <provincia do Brazil; como porque partiu com elles a «natureza do melhor do mundo. De toda a abundanacia de cousas necessarias para uso da vida, são ca«pazes; e ainda para recreação e delícia, a quem a «procurar. Ficam quasi na segunda região do ar de«pois de atravessada aquella notavel serrania, que «sempre vae subindo, accumulando montes sobre «montes, e tem bem que suar os que houverem de «vence-los, pera chegarem a gosar do raso das cam«pinas... O caminho com ser em parte escolhida, e «feito por arte, é tal, que põe assombro aos que hão «de subir ou descer, O mais do espaço não é cami«nhar, è trepar de pés e de mãos, aferrados ás raizes «das arvores, e por entre quebradas e despenhadeiros «taes, que confesso de mim que a primeira vez que «passei por aqui, me tremiam as carnes, olhando pera «baixo. A profundeza dos valles é espantosa, a diversidade dos montes, uns sobre outros, parece tirar a «'esperança de chegar ao fim, quando cuidaes que «chegaes ao cume de um, achaes-vos ao pé de outro não menor. Verdade é que compensava o trabalho «desta subida de quando em quando, porque assen«tado sobre algum daquelles penedos, lançando os Colhos pera baixo, me parecia que olhava do ceo «da lua, e que via todo o globo da terra posto «debaixo dos meus pés; e com notavel fermosura, pela variedade das vistas do mar, da terra, dos |