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tor tanto das scenas maritimas como terrestres, descreve este seu cruzeiro passado em sitio tão pouco favorecido da natureza:

Junto de hum secco, duro, esteril monte,
Inutil, e despido, calvo, e informe,
Da natureza em tudo aborrecido,
Onde nem ave voa, ou fera dorme, .
Nem corre claro rio, ou ferve fonte,
Nem verde ramo faz doce ruido;
Cujo nome do vulgo introduzido
He Felix, por antifrase infelice;
O qual a natureza

Situou junto á parte

Aonde hum braço de alto mar reparte
A Abassia, da Arabica aspereza,
Em que fundada já foi Berenice,
Ficando á parte, donde

O sol que nella ferve, se lhe esconde;

O Cabo se descobre, com que a Costa
Africana, que do Austro vem correndo,
Limite faz, Arómata chamado:
Arómata outro tempo, que volvendo
A roda, a ruda lingua mal composta
Dos proprios, outro nome lhe tem dado.
Aqui, no mar, que quer apressurado
Entrar por a garganta deste braço,
Me trouxe hum tempo, e teve

Minha fera ventura.

Aqui nesta remota, aspera, e dura

Parte do mundo, quiz que a vida breve

Tambem de si deixasse hum breve espaço:

Porque ficasse a vida

Por o Mundo em pedaços repartida.

Aqui me achei gastando huns tristes dias,
Tristes, forçados, máos, e solitarios,
De trabalho, de dor, de ira cheios:
Não tendo não sómente por contrarios

A vida, o sol ardente, as aguas frias,
Os ares grossos, fervidos, e feios,

Mas os meus pensamentos, que são meios

Para enganar a propria natureza,

Tambem vi cóntra mi, etc.

Com a alma chagada e em carne viva, como diz, continua desafogando com toda a vehemencia da dor contra o destino que o vexa com tão duro e aspero soffrimento:

Oh que este irado mar gemendo amanso!
Estes ventos da voz importunados,
Parece que se enfream:

Somente o ceo severo,

As estrellas, e o fado sempre fero,
Com meu perpetuo dano se recream,
Mostrando-se potentes, e indignados
Contra hum corpo terreno,

Bicho da terra vil, e tão pequeno.

Porém se de tantos trabalhos padecidos e buscados pela sua amante, tirasse o saber que alguma hora lhe lembrava, e que estas suas queixas tocavam as suas angelicas orelhas, isto só que soubesse seria descanso para a vida que lhe ficava:

Ah Senhora! Ah Senhora! E que tão rica
Estais, que cá tão longe de alegria
Me sustentais com doce fingimento!
Logo que vos figura o pensamento,

Foge todo o trabalho, e toda a pena, etc.

Com a lembrança da amante se acha forte para arrostar a morte, e os seus tormentos se tornam em saudades suaves. Com ellas de tão longe, e em tão remoto sitio, interroga os ares que sopram do lado da patria, as aves que ali voam, que lhe dêem novas da sua amante adorada:

Ali a vida cansada se melhora,

Toma espiritos novos, com que vença
A fortuna, e trabalho,

Só por tornar a ver-vos,

Só por ir a servir-vos, e querer-vos;
Diz-me o tempo que a tudo dará talho:
Mas o desejo ardente, que detença
Nunca soffreu, sem tento

Me abre as chagas de novo ao soffrimento.

Interessantissima, sem duvida, e maviosa poesia é esta, talvez a ultima que viu D. Catharina de Athaide, da qual consta que o Poeta ainda affagava a esperança lisonjeira de tornar a ver e possuir aquella que lhe inspirava tão exaltado sentimento de amor e da mais pungente saudade. Mas como o desejo do homem é ás vezes vão! Como a esperança, este fogo fatuo que nos luz ante os olhos e nos arrasta, alentando-nos, de tormento em tormento, se evapora rapidamente no momento em que mais a seguimos! Quando o Poeta lançava no papel estas linhas entre os baloiços das ondas do mar, a infeliz dama tinha os seus dias quasi contados; talvez o mesmo fogo ardente a abrasava, mas concentrado, a cortava lentamente a febre, definhava como mimosa flor cercada de cardos e abandonada da mão do cultor cuidadoso.

VIII

Mas é tempo de reconduzirmos o Poeta d'este aspero e enfadonho cruzeiro á barra de Goa, onde a armada de D. Fernando de Menezes chegou achando já por novo Vice-Rei a D. Pedro de Menezes, que ali tinha entrado a 16 de Setembro, e não a 23, como erradamente disse Diogo de Couto. Tristissimas noticias levou a armada que este anno partiu de Lisboa: a morte do Principe herdeiro D. João e a de D. Antonio de Noronha, que nos campos de Ceuta morrêra ás lançadas dos mouros. Uma e outra affectaram vivamente o nosso Poeta: a primeira pelo interesse publico, vendo que de nove filhos varões d'El-Rei D. Manuel, e seis d'El-Rei D. João III, apenas ficava pendente do delgado e precario fio do nascimento de um menino a successão e independencia da patria; a segunda pelo interesse e amisade que consagrava a D. Antonio. Esta despertou a Musa do Poeta, que na egloga i chorou a morte do amigo e do Principe. Era D. Antonio galhardo mancebo, a quem o

1 Vide nota 36.

pae, para desviar de certos amores, tinha mandado servir na praça de Ceuta, e ali foi victima da embuscada que os mouros armaram ao seu valoroso e imprudente tio D. Pedro de Menezes. Tinha sido parceiro no celebre torneio de Xabregas com o dito Principe, e agora a ambos de dezesete annos os tomava a morte ao mesmo tempo, na madrugada da vida. É uma observação para não ser omittida, que as notas mais profundas, tocantes, maviosas e enternecidas d'este canto funebre são dirigidas á falta do amigo, e n'elle lhe é reservado o primeiro logar. Não admira que quem era tão pouco cortezão, não medrasse muito entre as lisonjas do Paço.

Ao voltar a Goa do seu cruzeiro nos mares da Arabia devia o Poeta escrever tambem a sua canção vi, n'esta cidade, começando já a ser combatido dos vaivens da sorte adversa n'este longinquo exilio a que se tinha condemnado para tão longe da patria, talvez por obediencia áquella que, mau grado do coração, lhe impunha por circumstancias pena tão severa; mas que pode influir a mudança do corpo quando com elle vae a alma? a traça do coração não ha ares que a sacudam, não ha distancia que a extinga. Assim acontecia ao nosso Poeta; a saudade, a viva imagem da amante que continuamente se lhe apresentava, a lembrança do bem já passado se avivavam, á proporção que o desalento, o infortunio e a desesperação lhe rasgavam o coração a tão grande distancia do sitio onde gosára tanta ventura; e se alguma vez a esperança adejava algum vôo rasteiro, logo baqueava opprimida com todo o peso da miseria e do infortunio.

Esta fluctuação de tão oppostos sentimentos descreve o Poeta em todas as suas poesias escriptas n'estes sitios e n'esta sua canção; por ella vemos que obedecia a um preceito da sua dama, que usando de um rigor necessario punha os mares de permeio, ao mesmo tempo que compadecida o alentava com esperanças. Isto nos parece expressar no Vi ramo d'esta poesia, quando diz que como ao enfermo abandonado dos medicos

O amor lhe consentia

Esperanças, desejos e ousadia.

Mas qual é o cumulo de desventura do Poeta desgraçado! Se a indigencia, se a sorte adversa lhe abafam a esperança, tambem não pode desesperar, nem arrancar do coração um amor que tem n'elle raizes tão fortes; são estes os sentimentos que o Poeta expressa n'esta sua composição, da qual copiamos parte:

Com força desusada

Aquenta o fogo eterno

Huma ilha nas partes do Oriente,
De estranhos habitada,

Aonde o duro inverno

Os campos reverdece alegremente.

A lusitana gente

Por armas sanguinosas,

Tem della o senhorio.

Cercada está de hum rio

De maritimas agoas saudosas:
Das hervas que aqui nascem

Os gados juntamente e os olhos pascem.

Aqui minha ventura

Quiz que huma grande parte

Da vida, que eu não tinha, se passasse,

Para que a sepultura,

Nas mãos do fero Marte,

De sangue, e lembranças matizasse.

Se amor determinasse

Que a troco desta vida,

De mi qualquer memoria

Ficasse como historia,

Que de huns fermosos olhos fosse lida,

A vida e a alegria

Por tão doce memoria trocaria.

Vejamos agora como ao Poeta era imposta uma penitencia severa:

E agora venho a dar

Conta do bem passado

A esta triste vida, e longa ausencia.

Quem póde imaginar

Que houvesse em mi peccado

Digno de huma tão grande penitencia?

Olhai que he consciencia

Por tão pequeno erro,

Senhora, tanta pena.

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