tor tanto das scenas maritimas como terrestres, descreve este seu cruzeiro passado em sitio tão pouco favorecido da natureza: Junto de hum secco, duro, esteril monte, Situou junto á parte Aonde hum braço de alto mar reparte O sol que nella ferve, se lhe esconde; O Cabo se descobre, com que a Costa Minha fera ventura. Aqui nesta remota, aspera, e dura Parte do mundo, quiz que a vida breve Tambem de si deixasse hum breve espaço: Porque ficasse a vida Por o Mundo em pedaços repartida. Aqui me achei gastando huns tristes dias, A vida, o sol ardente, as aguas frias, Mas os meus pensamentos, que são meios Para enganar a propria natureza, Tambem vi cóntra mi, etc. Com a alma chagada e em carne viva, como diz, continua desafogando com toda a vehemencia da dor contra o destino que o vexa com tão duro e aspero soffrimento: Oh que este irado mar gemendo amanso! Somente o ceo severo, As estrellas, e o fado sempre fero, Bicho da terra vil, e tão pequeno. Porém se de tantos trabalhos padecidos e buscados pela sua amante, tirasse o saber que alguma hora lhe lembrava, e que estas suas queixas tocavam as suas angelicas orelhas, isto só que soubesse seria descanso para a vida que lhe ficava: Ah Senhora! Ah Senhora! E que tão rica Foge todo o trabalho, e toda a pena, etc. Com a lembrança da amante se acha forte para arrostar a morte, e os seus tormentos se tornam em saudades suaves. Com ellas de tão longe, e em tão remoto sitio, interroga os ares que sopram do lado da patria, as aves que ali voam, que lhe dêem novas da sua amante adorada: Ali a vida cansada se melhora, Toma espiritos novos, com que vença Só por tornar a ver-vos, Só por ir a servir-vos, e querer-vos; Me abre as chagas de novo ao soffrimento. Interessantissima, sem duvida, e maviosa poesia é esta, talvez a ultima que viu D. Catharina de Athaide, da qual consta que o Poeta ainda affagava a esperança lisonjeira de tornar a ver e possuir aquella que lhe inspirava tão exaltado sentimento de amor e da mais pungente saudade. Mas como o desejo do homem é ás vezes vão! Como a esperança, este fogo fatuo que nos luz ante os olhos e nos arrasta, alentando-nos, de tormento em tormento, se evapora rapidamente no momento em que mais a seguimos! Quando o Poeta lançava no papel estas linhas entre os baloiços das ondas do mar, a infeliz dama tinha os seus dias quasi contados; talvez o mesmo fogo ardente a abrasava, mas concentrado, a cortava lentamente a febre, definhava como mimosa flor cercada de cardos e abandonada da mão do cultor cuidadoso. VIII Mas é tempo de reconduzirmos o Poeta d'este aspero e enfadonho cruzeiro á barra de Goa, onde a armada de D. Fernando de Menezes chegou achando já por novo Vice-Rei a D. Pedro de Menezes, que ali tinha entrado a 16 de Setembro, e não a 23, como erradamente disse Diogo de Couto. Tristissimas noticias levou a armada que este anno partiu de Lisboa: a morte do Principe herdeiro D. João e a de D. Antonio de Noronha, que nos campos de Ceuta morrêra ás lançadas dos mouros. Uma e outra affectaram vivamente o nosso Poeta: a primeira pelo interesse publico, vendo que de nove filhos varões d'El-Rei D. Manuel, e seis d'El-Rei D. João III, apenas ficava pendente do delgado e precario fio do nascimento de um menino a successão e independencia da patria; a segunda pelo interesse e amisade que consagrava a D. Antonio. Esta despertou a Musa do Poeta, que na egloga i chorou a morte do amigo e do Principe. Era D. Antonio galhardo mancebo, a quem o 1 Vide nota 36. pae, para desviar de certos amores, tinha mandado servir na praça de Ceuta, e ali foi victima da embuscada que os mouros armaram ao seu valoroso e imprudente tio D. Pedro de Menezes. Tinha sido parceiro no celebre torneio de Xabregas com o dito Principe, e agora a ambos de dezesete annos os tomava a morte ao mesmo tempo, na madrugada da vida. É uma observação para não ser omittida, que as notas mais profundas, tocantes, maviosas e enternecidas d'este canto funebre são dirigidas á falta do amigo, e n'elle lhe é reservado o primeiro logar. Não admira que quem era tão pouco cortezão, não medrasse muito entre as lisonjas do Paço. Ao voltar a Goa do seu cruzeiro nos mares da Arabia devia o Poeta escrever tambem a sua canção vi, n'esta cidade, começando já a ser combatido dos vaivens da sorte adversa n'este longinquo exilio a que se tinha condemnado para tão longe da patria, talvez por obediencia áquella que, mau grado do coração, lhe impunha por circumstancias pena tão severa; mas que pode influir a mudança do corpo quando com elle vae a alma? a traça do coração não ha ares que a sacudam, não ha distancia que a extinga. Assim acontecia ao nosso Poeta; a saudade, a viva imagem da amante que continuamente se lhe apresentava, a lembrança do bem já passado se avivavam, á proporção que o desalento, o infortunio e a desesperação lhe rasgavam o coração a tão grande distancia do sitio onde gosára tanta ventura; e se alguma vez a esperança adejava algum vôo rasteiro, logo baqueava opprimida com todo o peso da miseria e do infortunio. Esta fluctuação de tão oppostos sentimentos descreve o Poeta em todas as suas poesias escriptas n'estes sitios e n'esta sua canção; por ella vemos que obedecia a um preceito da sua dama, que usando de um rigor necessario punha os mares de permeio, ao mesmo tempo que compadecida o alentava com esperanças. Isto nos parece expressar no Vi ramo d'esta poesia, quando diz que como ao enfermo abandonado dos medicos O amor lhe consentia Esperanças, desejos e ousadia. Mas qual é o cumulo de desventura do Poeta desgraçado! Se a indigencia, se a sorte adversa lhe abafam a esperança, tambem não pode desesperar, nem arrancar do coração um amor que tem n'elle raizes tão fortes; são estes os sentimentos que o Poeta expressa n'esta sua composição, da qual copiamos parte: Com força desusada Aquenta o fogo eterno Huma ilha nas partes do Oriente, Aonde o duro inverno Os campos reverdece alegremente. A lusitana gente Por armas sanguinosas, Tem della o senhorio. Cercada está de hum rio De maritimas agoas saudosas: Os gados juntamente e os olhos pascem. Aqui minha ventura Quiz que huma grande parte Da vida, que eu não tinha, se passasse, Para que a sepultura, Nas mãos do fero Marte, De sangue, e lembranças matizasse. Se amor determinasse Que a troco desta vida, De mi qualquer memoria Ficasse como historia, Que de huns fermosos olhos fosse lida, A vida e a alegria Por tão doce memoria trocaria. Vejamos agora como ao Poeta era imposta uma penitencia severa: E agora venho a dar Conta do bem passado A esta triste vida, e longa ausencia. Quem póde imaginar Que houvesse em mi peccado Digno de huma tão grande penitencia? Olhai que he consciencia Por tão pequeno erro, Senhora, tanta pena. |