Que tudo o tempo gastava. Da tristeza que tomei, Nos salgueiros pendurei Os orgãos com que cantava. Aquelle instrumento ledo Deixei da vida passada, Dizendo: Musica amada,
Deixo-vos neste arvoredo Á memoria consagrada.
Frauta minha, que tangendo Os montes fazieis vir
Par' onde estaveis, correndo; E as ágoas, que hião descendo, Tornavão logo a subir;
Jamais vos não ouvirão Os tigres, que s'amansavão; E as ovelhas, que pastavão, Das hervas se fartarão, Que por vos ouvir deixavão.
Ja não fareis docemente Em rosas tornar abrolhos
Na ribeira florecente;
Nem poreis freio à corrente,
E mais se for dos meus olhos.
Não movereis a espessura,
Nem podereis ja trazer Atraz vós a fonte pura; Pois não pudestes mover Desconcertos da ventura. Ficareis offerecida
Á Fama, que sempre vela,
Frauta de mi tão querida; Porque mudando-se a vida. Se mudão os gostos della. Acha a tenra mocidade Prazeres accommodados;
E logo a maior idade Ja sente por pouquidade Aquelles gostos passados.
Hum gôsto, que hoje s'alcança, Á manhãa ja o não vejo: Assi nos traz a mudança D'esperança em esperança, E de desejo em desejo. Mas em vida tão escassa Qu'esperança será forte? Fraqueza da humana sorte, Que quanto da vida passa Está recitando a morte!
Mas deixar nesta espessura
O canto da mocidade:
Não cuide a gente futura Que será obra da idade O que he força da ventura. Qu'idade, tempo, e espanto De ver quão ligeiro passe, Nunca em mi puderão tanto, Que, postoque deixo o canto, A causa delle deixasse.
Mas em tristezas e nojos, Em gôsto e contentamento; Por sol, por neve, por vento,
Tendré presente á los ojos
Por quien muero tan contento. Orgãos e frauta deixava, Despojo meu tão querido, No salgueiro que alli'stava, Que para tropheo ficava De quem me tinha vencido. Mas lembranças da affeição Que alli captivo me tinha, Me perguntárão então, Qu'era da musica minha, Que eu cantava em Sião? Que foi daquelle cantar, Das gentes tão celebrado? Porque o deixava de usar, Pois sempre ajuda a passar Qualquer trabalho passado?
Canta o caminhante ledo No caminho trabalhoso
Por entre o espêsso arvoredo; E de noite o temeroso Cantando refreia o medo. Canta o preso docemente, Os duros grilhões tocando; Canta o segador contente; E o trabalhador, cantando, O trabalho menos sente.
Eu qu'estas cousas senti N'alma de mágoas tão cheia, Como dirá, respondi,
Quem alheio está de si
Doce canto em terra alheia? Como poderá cantar
Quem em chôro banha o peito? Porque, se quem trabalhar Canta por menos cansar, Eu só descansos engeito. Que não parece razão, Nem sería cousa idonia,
Por abrandar a paixão
Que cantasse em Babylonia As cantigas de Sião.
Que quando a muita graveza De saudade quebrante
Esta vital fortaleza,
Antes morra de tristeza, Que por abrandá-la cante. Que se o fino pensamento Só na tristeza consiste, Não tenho medo ao tormento: Que morrer de puro triste, Que maior contentamento? Nem na frauta cantarei O que passo, e passei ja, Nem menos o escreverei; Porque a penna cansará, E eu não descansarei.
Que se vida tão pequena S'accrescenta em terra estranha ; E se Amor assi o ordena,
Razão he que canse a penna D'escrever pena tamanha.
Porém, se para assentar O que sente o coração, A penna ja me cansar, Não canse para voar A memoria em Sião. Terra bem-aventurada, Se por algum movimento. D'alma me fores tirada, Minha penna seja dada A perpétuo esquecimento. A pena deste destêrro, Qu'eu mais desejo esculpida Em pedra, ou em duro ferro, Essa nunca seja ouvida, Em castigo de meu êrro. E se eu cantar quizer Em Babylonia sujeito, Hierusalem, sem te ver, A voz, quando a mover, Se me congele no peito; A minha lingua se apegue Ás fauces, pois te perdi, S'em quanto viver assi Houver tempo, em que te negue, Ou que m'esqueça de ti.
Mas ó tu, terra de glória,
S'eu nunca vi tua essencia, Como me lembras na ausencia? Não me lembras na memoria,
Senão na reminiscencia :
Que a alma he taboa rasa,
« VorigeDoorgaan » |