Mais certo manjar d’alma, enfim, que túdo. Cantára-nos aquelle, que tam claro O fez o fogo da árvore phebêa, A qual elle em estylo grande e raro Louvando, o crystallino Sorga enfrêa ! Tangêra-nos na frauta Sanazaro, Ora nos montes, ora pola arêa! Passára celebrando o Tejo ufano O brando e doce Lasso castelhano. E connosco tambem se achára aquella, Cuja lembrança, e cujo claro gesto Na alma sòmente vejo, porque nella Está em essencia, puro e manifesto; Por alta influição de minha estrella Mitigando o rigor do peito honesto, Entretecendo rosas nos cabellos, De que tomasse a luz o sol em vê-los; E emquanto por verão flores colhesse, por inverno ao fogo accomodado, que de mi sentira nos dissesse,
De puro amor o peito salteado ;
Não pedira então eu, que Amor me désse Do insano Trasilao o doudo estado; Mas que alli me dobrasse o entendimento, Por ter de tanto bem conhecimento! Mas por onde me leva a phantasia ? Porque imagino em bem-aventuranças, Se tam longe a Fortuna me desvia, Qu'inda me não consente as esperanças? Se um novo pensamento Amor me cria Onde o lugar, o temor, as esquivanças Do bem me fazem tam desamparado, Que não póde ser mais qu'imaginado ?
Fortuna, enfim, co'o Amor se conjurou Contra mi, porque mais me magoasse. Amor a um vão desejo me obrigou, Só para que a Fortuna m'o negasse. O Tempo a tal estado me chegou, E nelle quis que a vida se acabasse..... Se ha em mi acabar-se, o qu'eu não creio, Que até da muita vida me receio.
Carta elegiaca, aa India,
á D. Antonio de Noronha
O POETA Simónides, fallando Co'o Capitão Themistocles um dia, Em cousas de sciencia praticando, Um'arte singular lhe promettia Qu'então compunha, com que lh'ensinasse A lembrar-se de tudo o que fazia,
Onde tam subtis regras lhe mostrasse Que nunca lhe passassem da memoria Em nenhum tempo as cousas que passasse.- Bem merecia, certo, fama e gloria Quem dava regra contra o esquecimento Que sepulta qualquer antigua historia. Mas o Capitão claro, cujo intento Bem differente estava, porque havia Do passado as lembranças por tormento, «Oh illustre Simónides!» dizia, «Pois tanto em teu engenho te confias, Que mostras á memoria nova via,
Se me désses um’arte, qu'em meus dias Me não lembrasse nada do passado,
Oh quanto melhor obra me farias !» Se este excellente dito ponderado Fosse por quem se visse estar ausente, Em longas esperanças degradado, Oh como bradaria justamente : Simónides, inventa novas artes! Não midas o passado co'o presente ! »
Que se é forçado andar por várias partes Buscando á vida algum descanso honesto, Que tu, Fortuna injusta, mal repartes ;
E se o duro trabalho é manifesto Que, por grave que seja, ha de passar-se Com animoso esprito e ledo gesto,
De que serve ás pessoas o lembrar-se Do que se passou ja, pois tudo passa, Senão d'entristecer-se e magoar-se?
Se em outro corpo um'alma se traspassa, Não (como quis Pythagoras) na morte, Mas (como quer Amor) na vida escassa ;
E se este Amor no mundo está de sorte Que na virtude só d'um lindo objecto Tem um corpo sem alma, vivo e forte,
Onde este objecto falta (que é defecto Tamanho para a vida, que ja nella Me está chamando á pena a dura Alecto); Porque me não criára a minha estrella Selvatico no mundo, e habitante
Na dura Scythia, e no mais duro d'ella? Ou no Caucaso horrendo, fraco infante, Criado ao peito d'uma tigre hyrcana, Homem fora formado de diamante? Porque a cerviz ferina e inhumana Não submettêra ao jugo e dura lei
D'aquelle que dá vida quando engana. Ou em pago das aguas qu'estilei, As que passei do mar, foram do Lete, Para que m'esquecêra o que passei !
Porque o bem que a esperança vă promette, Ou a morte o estorva, ou a mudança, Que é mal que umʼalma em lagrimas derrete. Ja, Senhor, cahirá como a lembrança No mal do bem passado é triste e dura, Pois nasce aonde morre a esperança. E se quiser saber como se apura Em almas saudosas, não s'enfade De ler tam longa e misera escriptura.
Soltava Eolo a redea e liberdade
Ao manso Favonio brandamente, E eu a tinha ja sôlta á saudade. Neptuno tinha pôsto o seu tridente; A proa a branca escuma dividia, Com a gente maritima contente.
O coro das Nereidas nos seguia ; Os ventos, namorada Galatêa Comsigo sossegados os movia.
Das argenteas conchinhas Panopêa Andava por o mar fazendo molhos, Melanto, Dinamene, com Ligêa.
Eu, trazendo lembranças por antolhos, Trazia os olhos n'agua sossegada, E a agua sem sossêgo nos meus olhos. A bem-aventurança ja passada Diante de mi tinha tam presente, Como se não mudasse o tempo nada.
E com o gesto immoto e descontente, Co'hum suspiro profundo e mal ouvido, Por não mostrar meu mal a toda a gente, Dizia: «Oh claras Nymphas! se o sentido Em puro amor tivestes, e inda agora Da memoria o não tendes esquecido; Se por ventura fordes algum'hora Adonde entra o gram Tejo a dar tributo A Tethys, que vós tendes por Senhora, Ou ja por ver o verde prado enxuto, Ou ja por colher ouro rutilante, Das Tagicas areias rico fruto,
Nellas em verso erotico e elegante Escrevei co'uma concha o qu'em mi vistes! Póde ser que algum peito se quebrante, E contando de mi memorias tristes, Os pastores do Tejo, que me ouviam, Ouçam de vós as mágoas que me ouvistes. » Ellas, que ja no gesto m'entendiam, Nos meneios das ondas me mostravam, Qu'em quanto lhes pedia consentiam.
Estas lembranças, que me acompanhavam Por a tranquilidade da bonança, Nem na tormenta triste me deixavam. Porque, chegando ao Cabo da Esperança, Comêço da saudade que renova, Lembrando a longa e aspera mudança, Debaixo estando ja da estrella nova Que no novo hemispherio resplandece, Dando do segundo axe certa prova:
Eis a noite com nuvens s'escurece; Do ar subitamente foge o dia ; E todo o largo Oceano s'embravece.
« VorigeDoorgaan » |