Dos affectos com que venho, Que encendem alma e engenho, Que ja me entraram o muro Do livre arbitrio que tenho; Estes que tam furiosos Gritando vem a escalar-me, Maos espiritos damnosos, Que querem como forçosos Do alicerce derribar-me; Derribae-os, fiquem sós, De forças fracos, imbelles! Porque não podemos nós, Nem com elles ir a vós, Nem sem vós tirar-nos d'elles. Não basta minha fraqueza Para me dar defensão, Se vós, santo Capitão, Nesta minha Fortaleza Não puserdes guarnição.
E tu, oh carne que encantas, Filha de Babel tam feia, Toda de miseria cheia, Que mil vezes te levantas Contra quem te senhoreia, Beato só póde ser Quem co'a ajuda celeste Contra ti prevalecer, E te vier a fazer
O mal que The tu fizeste; Quem com disciplina crua Se tere mais que uma vez; Cuja alma, de vicios nua, Faz nodoas na carne sua,
Que ja a carne na alma fez. E beato quem tomar Seus pensamentos recentes E em nascendo os affogar, Por não virem a parar Em vicios graves e urgentes; Quem com elles logo der Na pedra do furor santo, E batendo os desfizer Na Pedra, que veio a ser Enfim «cabeça do canto ; » Quem logo, quando imagina Nos vicios da carne má, Os pensamentos declina Áquella carne divina
Que na Cruz esteve ja;
Quem do vil contentamento Cá d'este mundo visibil, Quanto ao homem fôr possibil, Passar logo o entendimento Para o mundo intelligibil, Alli achará alegria, Em tudo perfeita, e cheia De tam suave harmonia Que nem por pouca recreia, Nem por sobeja enfastia. Alli verá tam profundo Mysterio na summa Alteza, Que, vencida a natureza, Os móres faustos do mundo Julgue por maior baixeza. Oh tu divino aposento, Minha patria singular,
Se só com te imaginar, Tanto sobe o entendimento, Que fará, se em ti se achar? Ditoso quem se partir Para ti, em terra excellente, Tam justo e tam penitente Que despois de a ti subir, Lá descanse enternamente!
IMAGENS vans me imprime a fantasia, Discursos novos acha o pensamento,
Com que dão á minha alma gram tormento, Cuidados de cem annos num só dia. Se fim grande tivessem, bem seria Responder a esperança ao fundamento, Mas o Fado não corre tanto a tento Que reserve á razão sua valia.
Caso e Fortuna podem acertar, Mas se por accidente dão victoria, Sempre o favor da Fama é falsa historia. Excede ao saber, determinar;
Á constancia se deve toda a gloria; O animo livre é digno de memoria.
CANTAVA Alcido um dia ao som das aguas Do Lima, que mais brando alli corria, Dizem que por ouvir suas doces magoas. Sobre um curvo penedo que pendia Por cima da corrente vagarosa, Se me não lembra mal, assi dizia:
«Sylvia, nestes meus olhos mais fermosa Que o sol de dia, que de noite a lua, Não digo lirio ja, não digo rosa,
«Que flor não cria o valle, que da tua Fermosura não tenha grand' inveja, Se tam fermosa es, como es tam crua? «Porque desprezas, Sylvia, quem deseja Mais o teu gosto só que a propria vida ? Porque t'escondes onde te não veja? «Nem sempre no bosque espesso escondida A mansa cerva está posta em seguro, Nem senipre em raso campo é ofendida. «Vem, Sylvia, ja ver neste cristal puro Teu brando parecer, d'aqui de cima D'este penedo, menos que ti duro! «Porque fazes, cruel, tam pouca estima D'esta fresca ribeira, d'estas flôres, Que mansamente rega o manso Lina? «Aqui as doces aves seus amores
D'um um ramo em outro ramo vão cantándo Aqui se veste o campo de mil flôres,
«D'aqui, donde por ti estou chamando, No fundo d'este pégo os negros peixes E os brancos seixos estarás contando.
«Ou te queixes de mim ou te não queixes,
Ou branda ou sempre crua me respondas, Este fresco lugar, Sylvia, não deixes! Uma sombria lapa, em que t'escondas Do sol, te mostrarei: dormirás nella Ao som do murmurar das roucas ondas. «Emtanto do teu gado serei vela E juntamente t'estarei tecendo De branca madresilva uma capela.
«D'alli, indo o sol ja menos ardendo, Ao longo d'este rio nos iremos, Ora uma flor, ora outra flor colhendo. «Os olhos pelo campo estenderemos, O saudoso melro d'uma banda
E o doce rouxinol d'outra ouviremos. «Sylvia soando irá na lira branda, Soará Sylvia na montanha dura, Que sua dureza com teu nome abranda. «Desque deixei de ver tua fermosura
Ja o sol tres vezes lumiou a terra
E outras tantas a deixou escura.
«Qualquer lugar que em si t'esconde e encerra, Nunca o verei sem dôr, nunca sem magoa, Ou seja campo ou bosque, valle ou serra. «Achei de duas rolas nesta fragoa Os tenros filhos sobre um freixo antigo Que tem suas raizes dentro na agua. «Saltou a nossa Filis ja comigo Com dadivas e rogos, que lh'os desse. ««Não trabalhes em vão, Filis»» lhe digo. «Tam corrida se foi que, se soubesse Onde elles ora estão, tenho por certo Que m'os furtasse logo, se pudesse. «Mas não os pode ver, senão de perto,
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