no Cathalogo deste Regno. O merecimento desta edição é infinitamente inferior ao da 1a Pois achando-se nella reproduzidos todos os erros typographicos e indecentes chocarrices da primeira, bem se póde conjecturar que qualidade de emendas temos a esperar do gôsto e litteratura daquelle pio tribunal. Versos omittidos, outros rediculamente em todo ou em parte alterados, coplas cortadas, e finalmente paginas inteiras a eito supprimidas, E estes lugares mutilados, como é de suppor, não são dos menos interessantes de Gil Vicente. Como poderia, por exemplo, um inquisidor que aspirasse a bispar, ler sem se alterar, e sem fulminar immediatamente o formidavel veto a similhantes passagens: E a gente religiosa E logo não porão grosa. Fecharemos estas notícias bibliographicas com advertir que ultimamente sahírão impressos alguns autos e comedias castelhanas do nosso poeta na interessante collecção intitulada: Teatro Español anterior á Lope de Vega. Gotha, 1833. Em quanto ao plano que seguimos na presente edição, depois de devida reflexão, adoptamos o seguinte, que esperamos mereça a approvação do publico litterario. Corrigimos todo o logar onde nos pareceo manifesto o erro typographico, sem nos deixarmos acanhar pela cega predilecção que tanto voga entre nós pelas antigas edições, (*) (superstição que o atrazamento em que a arte typographica se achava então em Portugal, de maneira alguma authoriza) que faz com que muitos tenhão pelos logares claramente corrompidos, a mesma veneração que a misterios que não podem comprehender. Emquanto á ortographia, assentamos aproximar-nos da moderna, nunca porém de maneira que a pronúncia soffresse alteração, dando uma voz moderna pela antiga. Conservamos pois sam e som por sou, devação por devoção, concrusão por conclusão e outras similhantes. No fim do 30 vol. encontrará o leitor uma taboa glossaria mostrando a significação conjectural de alguns termos antiquados e rusticos, portuguezes e castelhanos, que se não encontrão nos melhores diccionarios das duas linguas. Finalmente assentamos nada omittir do que se achava impresso na 1a ed. E nesta parte não dissimularemos as objeções que contra si tem este systhema. Bem sentimos que nas obras do nosso poeta se encontrão passagens, que por ineptas e despidas de todo o (*) Ainda não ha muito tempo appareceo em Lisboa uma edição da Peregrinação de Fernan Mendes Pinto, em que o editor se preza de ter seguido o texto da 1a, regeitando a segunda, aindaque correcta e augmentada pelo Autor. Mas que muito, SC a sumptuosa edição dos Lusiadas de Paris 1817, resuscitou e conservou como bellezas poeticas, os erros da corregidos por Camões na 2a ! alento poetico, que em outras partes o autor mostrou possuir em eminente grau, são summamente fastidiosas á leitura e prejudiciaes em certo modo á reputação do nosso poeta. Mas outras principalmente, por sua indecencia e por peccarem contra as leis do decoro, não estão em harmonia com os costumes e civilização do nosso seculo, supposto que aquellas indecentes bufonerias se representassem no Paço, muitas vezes na Igreja, e fizessem as delicias de duas brilhantes côrtes. Taes logares muitos estimarião ver inteiramente supprimidos ou modificados, e esse sería o nosso parecer, a não ser esta consideração. Obras como as de Gil Vicente (e assim é quasi todo o drama comico do seu tempo) não se imprimem hoje em dia com o mesmo fim que na epocha em que forão escriptas. Então Gil Vicente era lido, representava-se, gostava-se e talvez passagens bem reprehensiveis fossem as mais applaudidas; emfim depois de impresso, tornou-se propriedade do povo, que, nas horas de ocio, nelle achava um alegre passatempo e um rico thesouro de rifões e dictados para colorir e animar suas conversas, e que seus leitores de paes a filhos transmittirão á posteridade. Agora porém estas obras pertencem ao dominio da historia da historia da litteratura, dos costumes, e so nas mãos dos litteratos é que tem de andar. E quem não folgará de encontrar nestas antigualhas um painel verdadeiro dos tempos dos nossos maiores? O litterato passa por essas indecencias que encontra entre muita belleza verdadeira, e não culpa o autor, que bem sabe defeito do seculo era e não seu; e he em similhantes quadros que o philosopho se apraz em contemplar as grandes revoluções que a civilização vai fazendo no modo de pensar e nos costumes dos homens. Assim preferimos olhar estas obras como um documento historico que se deve conservar intacto. Emfim, julgamos ter feito um importante serviço á litteratura em geral, e em particular á Portugueza, restaurando as quasi perdidas obras de um de seus mais celebrados engenhos, satisfazendo tambem os desejos de muitos litteratos distinctos, tanto nacionaes como estrangeiros, e cumprindo o vaticinio de Garção, quando no seu drama intitulado O Theatro novo, assim apostrophava os manes dos nossos antigos poetas dramaticos: Vós manes de Ferreira e de Miranda, E tu, ó Gil Vicente, a quem as Musas ENSAIO SOBRE A VIDA E ESCRIPTOS DE GIL VICENTE. No glorioso periodo da nossa historia que abrange o reinado de D. Manuel até meado o de D. João III., floreceo em Lisboa o nosso Gil Vicente, por seus comtemporaneos chamado o Plauto Portuguez. As noticias que á posteridade chegárão sôbre seu nascimento e parentela são extremamente escassas e obscuras. De seus paes se diz que erão de illustre extracção(*); a respeito do logar e anno de seu nascimento nada se sabe com certeza. Assim como ja coube em sorte a muitos varões illustres, varios logares tem sido mencionados como sua patria. Guimarães, Barcellos e Lisboa disputão entre si esta honra. A epocha porém deste acontecimento se póde fixar no principio do último quartel do XV seculo. Mas, ou o nosso poeta fosse realmente nascido em Lisboa, ou da Provincia tivesse vindo frequentar a Universidade, que então se achava na capital, uma passagem de suas obras nos induz a crer que elle ja vivia nesta cidade no reinado de D. João II., isto é antes do anno de 1495; pois fallando deste grande rei no seu primeiro Auto, na figura de pastor Gil, diz, recordando-se delle: (**) (*) Barbosa, Bibliot. Lusit. (**) Tom. 1o pag. 9. |