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Recolhido o Vice-Rei a Goa, tratou logo de despachar e preparar uma lusida armada para seu filho D. Fernando de Menezes ir ao estreito de Meca, e de lá ir a invernar a Ormuz para esperar as galés que saíssem de Bacorá, para cuja expedição mandou pagar a mil e duzentos homens. Partida a armada de Goa, foi seguindo sua derrota até o Monte Felix, onde esteve esperando pelas naus do Achèm e Cambaia, e d'ali deitou algumas fustas ligeiras ás partes do Estreito a tomar falla das galés. Como era entrado o mez de Abril, e era necessario recolherem-se a Ormuz, deu a armada á véla e foi correndo a costa da Arabia, e chegando á fortaleza de Dofar surgiu toda, porque D. Fernando levava em regimento de seu pae, que lançasse d'ella os fartaquins. Desembarcou em terra a gente, e depois de uma refrega com aquelles que saíram da fortaleza, e em que os nossos fizeram grande estrago, tornaram a embarcar por se assentar em conselho de se não cometter a fortaleza, por se não poder desembarcar a artilheria.

Embarcados deram á véla e foram correndo toda a costa, até dobrarem o cabo de Rosalgate. D'ali foram a Mascate, onde entrou a armada, e D. Fernando de Menezes a entregou a Manuel de Vasconcellos, fidalgo experimentado que o Vice-Rei tinha posto ao lado do filho para o guiar, e elle se passou a Ormuz d'onde veiu depois a Mascate metter-se novamente na armada.

N'esta julgo eu, e não n'aquella em que partiu o anno seguinte o mesmo Manuel de Vasconcellos para o mesmo cruzeiro, se embarcou Camões, ficando em Mascate com aquelle capitão. Se n'isto me afasto do resto dos seus biographos não é em tudo, mas simplesmente no anno, pois foi com o mesmo Manuel de Vasconcellos que fez este cruzeiro. Não me parece natural que Camões ambicioso de gloria esperdiçasse uma occasião tão favoravel de empregar o seu ardor militar como aquella em que o Vice-Rei armava uma expedição para seu filho, e se não contentaria com lhe fazer um soneto, isto é, o iv, que Faria e Sousa não pôde descobrir a que pessoa da familia dos Menezes se dirigia. O resultado da expedição de D. Fernando foi a tomada de sete galės com trinta e seis peças de artilheria grossa com seus apparelhos. É para ver o enthusiasmo com que o velho Vice-Rei, em uma carta escripta da bahia d'Angra, que se conserva no archivo da Torre do Tombo, relata a El-Rei a victoria do filho.

Na canção x, uma das mais interessantes e patheticas composições do nosso Poeta, na qual pinta com toda a exactidão topographica a aridez do cabo de Guardafú, mostrando-se como sempre habilissimo pin

tor tanto das scenas maritimas como terrestres, descreve este seu cruzeiro passado em sitio tão pouco favorecido da natureza:

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A vida, o sol ardente, as aguas frias,

Os ares grossos, fervidos, e feios,

Mas os meus pensamentos, que são meios

Para enganar a propria natureza,
Tambem vi contra mi, etc.

Com a alma chagada e em carne viva, como diz, continua desafogando com toda a vehemencia da dor contra o destino que o vexa com tão duro e aspero soffrimento:

Oh que este irado mar gemendo amanso!
Estes ventos da voz importunados,
Parece que se enfream:

Somente o ceo severo,

As estrellas, e o fado sempre fero,
Com meu perpetuo dano se recream,
Mostrando-se potentes, e indignados
Contra hum corpo terreno,

Bicho da terra vil, e tão pequeno.

Porém se de tantos trabalhos padecidos e buscados pela sua amante, tirasse o saber que alguma hora lhe lembrava, e que estas suas queixas tocavam as suas angelicas orelhas, isto só que soubesse seria descanso para a vida que lhe ficava:

Ah Senhora! Ah Senhora! E que tão rica
Estais, que cá tão longe de alegria
Me sustentais com doce fingimento!-
Logo que vos figura o pensamento,

Foge todo o trabalho, e toda a pena, etc.

Com a lembrança da amante se acha forte para arrostar a morte, e os seus tormentos se tornam em saudades suaves. Com ellas de tão longe, e em tão remoto sitio, interroga os ares que sopram do lado da patria, as aves que ali voam, que lhe dêem novas da sua amante adorada:

Ali a vida cansada se melhora,

Toma espiritos novos, com que vença
A fortuna, e trabalho,

Só por tornar a ver-vos,

Só por ir a servir-vos, e querer-vos;
Diz-me o tempo que a tudo dará talho:
Mas o desejo ardente, que detença
Nunca soffreu, sem tento

Me abre as chagas de novo ao soffrimento.

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Interessantissima, sem duvida, e maviosa poesia é esta, talvez a ultima que viu D. Catharina de Athaide, da qual consta que o Poeta ainda affagava a esperança lisonjeira de tornar a ver e possuir aquella que lhe inspirava tão exaltado sentimento de amor e da mais pungente saudade. Mas como o desejo do homem é ás vezes vão! Como a esperança, este fogo fatuo que nos luz ante os olhos e nos arrasta, alentando-nos, de tormento em tormento, se evapora rapidamente no momento em que mais a seguimos! Quando o Poeta lançava no papel estas linhas entre os baloiços das ondas do mar, a infeliz dama tinha os seus dias quasi contados; talvez o mesmo fogo ardente a abrasava, mas concentrado, a cortava lentamente a febre, definhava como mimosa flor cercada de cardos e abandonada da mão do cultor cuidadoso.

VIII

Mas é tempo de reconduzirmos o Poeta d'este aspero e enfadonho cruzeiro á barra de Goa, onde a armada de D. Fernando de Menezes chegou achando já por novo Vice-Rei a D. Pedro de Menezes, que ali tinha entrado a 16 de Setembro, e não a 23, como erradamente disse Diogo de Couto. Tristissimas noticias levou a armada que este anno partiu de Lisboa: a morte do Principe herdeiro D. João e a de D. Antonio de Noronha, que nos campos de Ceuta 1 morrêra ás lançadas dos mouros. Uma e outra affectaram vivamente o nosso Poeta: a primeira pelo interesse publico, vendo que de nove filhos varões d'El-Rei D. Manuel, e seis d'El-Rei D. João III, apenas ficava pendente do delgado e precario fio do nascimento de um menino a successão e independencia da patria; a segunda pelo interesse e amisade que consagrava a D. Antonio. Esta despertou a Musa do Poeta, que na egloga i chorou a mórte do amigo e do Principe. Era D. Antonio galhardo mancebo, a quem o

1 Vide nota 36.*

pae, para desviar de certos amores, tinha mandado servir na praça de Ceuta, e ali foi victima da embuscada que os mouros armaram ao seu valoroso e imprudente tio D. Pedro de Menezes. Tinha sido parceiro no celebre torneio de Xabregas com o dito Principe, e agora a ambos de dezesete annos os tomava a morte ao mesmo tempo, na madrugada da vida. É uma observação para não ser omittida, que as notas mais profundas, tocantes, maviosas e enternecidas d'este canto funebre são dirigidas á falta do amigo, e n'elle lhe é reservado o primeiro logar. Não admira que quem era tão pouco cortezão, não medrasse muito entre as lisonjas do Paço.

Ao voltar a Goa do seu cruzeiro nos mares da Arabia devia o Poeta escrever tambem a sua canção vi, n'esta cidade, começando já a ser combatido dos vaivens da sorte adversa n'este longinquo exilio a que se tinha condemnado para tão longe da patria, talvez por obediencia áquella que, mau grado do coração, lhe impunha por circumstancias pena tão severa; mas que póde influir a mudança do corpo quando com elle vae a alma? a traça do coração não ha ares que a sacudam, não ha distancia que a extinga. Assim acontecia ao nosso Poeta; a saudade, a viva imagem da amante que continuamente se lhe apresentava, a lembrança do bem já passado se avivavam, á proporção que o desalento, o infortunio e a desesperação lhe rasgavam o coração a tão grande distancia do sitio onde gosára tanta ventura; e se alguma vez a esperança adejava algum vôo rasteiro, logo baqueava opprimida com todo o peso da miseria e do infortunio.

Esta fluctuação de tão oppostos sentimentos descreve o Poeta em todas as suas poesias escriptas n'estes sitios e n'esta sua canção; por ella vemos que obedecia a um preceito da sua dama, que usando de um rigor necessario punha os mares de permeio, ao mesmo tempo que compadecida o alentava com esperanças. Isto nos parece expressar no Vi ramo d'esta poesia, quando diz que como ao enfermo abandonado dos medicos

O amor lhe consentia

Esperanças, desejos e ousadia.

Mas qual é o cumulo de desventura do Poeta desgraçado! Se a indigencia, se a sorte adversa lhe abafam a esperança, tambem não pode desesperar, nem arrancar do coração um amor que tem n'elle raizes tão fortes; são estes os sentimentos que o Poeta expressa n'esta sua composição, da qual copiâmos parte :

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