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O auto que se segue he intitulado Breve Summario da historia de Deos. Foi representado ao muito alto e mui poderoso Rei Dom João, o terceiro deste nome em Portugal, e á Serenissima e muito esclarecida Rainha Dona Catherina, em Almeirim, na era do Senhor de 1527.

Vol. I.

20

AUTO DA HISTORIA DE DEOS.

Entra hum Anjo, e a modo de argumento diz o seguinte introito.

ANJO.

Ainda que todalas cousas passadas
Sejão notorias a Vossas Altezas,

A história de Deos tem taes profundezas,
Que nunca se perde em ser recontadas.
E porque o tenor

Da resurreição de nosso Senhor

Tem as raizes naquelle pomar,

Ao pé d'aquella árvore que ouvistes contar,
Aonde Adão se fez peccador,

Convem se lembrar.

Portanto o exordio do auto presente

Começa tractando desta creação,

E como Lucifer tomou gran paixão

De Deos crear mundo tão resplandecente.

E assi a inveja

E a sua malicia d'inveja sobeja

Por ver nossos padres assi nobrecidos,
Feitos gloriosos, tão esclarecidos,

Que não pelos olhos lhe armárão peleja,
Mas pelos ouvidos.

Entrará primeiro o muito soberbo
Lucifer, anjo que foi dos maiores,

E Belial e Satanaz, senhores

De muita maldade de verbo a verbo.
Agora vereis

O que por diversos doctores lereis
D'ab initio mundi até á resurreição;
A qual se endereça a final tenção

Dos versos seguintes. Não vos enfadeis,
Que breves serão.

Entra Lucifer, o Maioral do Inferno, e com elle Belial, Meirinho da sua corte, e Satanaz, Fidalgo do seu Conselho; e depois de assentado diz

LUCIFER.

Venho herege do mundo que fez

O Deos lá de cima tão longo e tão passo,

Feito de nada por tanto compasso,

Tal que pasmado fico eu desta vez.

BEL. Mais he d'espantar

Do homem e mulher que fez no pomar.

Luc. Isso queria eu agora dizer;

Porque daquelles podem proceder
Tantos espritos, que possão ganhar
O que fomos perder.

Hajamos conselho sôbre esta façanha,
Que Deos não nos ha de leixar acuar:
Todo seu feito he fazer-nos pesar,

Alem de deitar-nos de sua companha.

BEL. Assi me parece.

SAT. De Adão e Eva que mal nos recrece?
BEL. Dar Deos a elles o que nos tomou.
SAT. Dar Deos a elles o que nos tomou?

BEL. Não cuides tu al; que este he o alicesse

Em que se fundou.

SATANAZ.

Pois que remedio? que este mal he muito!

Luc. Deos lhe mandou mandado mui forte,

Şob pena de dores, trabalhos e morte,
Que não lhe tocassem em hum certo fruito,
Fruito da sciencia;

Porque perderão sua innocencia,
Angelica em parte, subtil e immortal,
E a posição do paraizo terreal:
Isto em peccando, á primeira audiencia
Sentença final.

Vae tu, Satanaz, por embaixador,
Eu te dou meu comprido poder;
E vae-te a Eva, porque he mulher,
E dize que coma, não haja temor:
E, como avisado,

Lhe falla cortez e mui repousado,
Mostrando-te alegre com todo seu bem,
E seu muito amigo maior que ninguem:
Minte-lhe largo, e dá-lhe o cuidado
Que agora não tem.

Vem tomar graça, pois has de prégar
Á mais avisada senhora do mundo:
Eu te outorgo meu poder facundo,
Não hajas dó della, faze-a finar,
Destrue-la asinha;

Nem por formosa, nem por ser rainha,

Não olhes por nada, aperta com ella:

Que como a venceres, sem ti, mesma ella
Fará ao marido cobrir-se de tinha,

E muito mais qu'ella.

SATANAZ.

Em que figura lhe fallarei bem?

Luc. Faze-te cobra, por dissimular,
Porque pareças do mesmo pomar,

Que sabes das fructas as graças que tem;
Porque has de dizer:

Senhora fermosa, deveis de saber

Que aquella fructa que vos foi vedada

Oh! quanta sciencia em si tem cerrada.

SAT. Ja vos entendo, não falleis mais nada;

Leixae-me fazer.

Partido o tentador Satanaz, Belial anojado de inveja porque Lucifer o não mandou a elle, diz:

BELIAL.

Crede hua cousa, Senhor Lucifer,
Que não ha hi pena que seja igual
Áquella que sente o grande official,
Quando ninguem lhe dá que fazer.
Eu sou dos primeiros

E o vosso leal entre os cavalleiros,

E mais sou Meirinho desta vossa côrte.

Vós não fazeis guerra em que eu faça sorte,

E sendo ineirinho sem prisioneiros

Me pesa de morte.

E foste mandar Satanaz agora
Com todo poder de vosso vigor,
Accrescentado por embaixador,
Ao novo Senhor e nova Senhora,
Porém a mim não.

Se lá me mandáras, me houvera por cão,

Se não os fizera per força peccar:

Logo per força os fizera tragar

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