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Nós bem sentimos a difficuldade que atégora teria encontrado a reimpressão de um escriptor que foi o inimigo jurado daquelles mesmos que tinhão de dispensar todas as licenças necessarias; e que a thesoura fradesco-desembargatoria havia de ser mais desapiedada do que a mesma inquisitoria que em 1586 mutilou e desfigurou o nosso poeta. Mas ainda restava o recurso de imprimir fóra do Reino, apezar das desvantagens em que, a outros respeitos, laborão os que em paizes estrangeiros tomão sôbre si taes emprezas.

Movidos do amor que sempre tivemos pelas nossas cousas e desejosos de revindicar a parte da gloria que cabe à nossa Patria pelos excellentes engenhos, que illustrando-a com seus escriptos, cooperárão para a grande obra da restauração das lettras, tinhamos meditado a empreza de tirar á luz uma serie de edições de nossos classicos, quando nos veio à noticia, que nas nossas visinhanças, na rica biblioteca da Universidade de Goettingen, existia um exemplar da 1a edição das obras de Gil Vicente. Sem perda de tempo nos apresentamos naquella cidade, onde em menos de um mez tiramos uma tui.fiel cópia daquelle precioso livro, sôbre que ao depois fizemos a presente edição. Não passaremos em silencio os obsequios que do Dr Antonio Menezes de Drummond recebemos, o qual, pelo seu amor das bellas letras, nos procurou, como membro daquella Universidade, que então cursava, a faculdade de usarmos dos livros da Biblioteca, o que a estranhos é

vedado; pelo que lhe rogamos queira acceitar este público testimunho da nossa gratidão.

Das obras do nosso poeta se fizerão, como dissemos, duas edições, ambas posthumas. A primeira foi feita em Lisboa na Imprensa de João Alvares, em 1562, fol., com o titulo seguinte: Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, a qual se reparte em cinco livros. 0 primeiro he de todas suas obras de devaçam. O segundo as Comedias. O terceiro as Tragicomedias. O quarto as Farças. No quinto as obras meudas. O editor foi Luiz Vicente, filho do poeta, que nos diz que seu pae as andava ordenando para as dar á estampa, quando a morte o arrebatou em meio de sua tarefa. O alvará de privilegio, comtudo, foi concedido a Paula Vicente, igualmente filha do poeta, em 1561. Esta edição impressa com caracteres gothicos, á excepção dos argumentos, que são impressos em letra romana, argue incuria e pouco esmero do impressor, não so pelos erros typographicos.de, que abunda mas pela frequente falta de espaços. entre, as palavras, o que muitas vezes offerece serios obstaculos, á intelligencia do texto. Algumas gravuras em pau, que adornão esta edição, não são inteiramente destituidas de merito e de interesse para a historia desta arte entre nós. A 2 edição foi igualmente feita em Lisboa na imprensa de André Lobato, 1585, 4 com o mesmo titulo da precedente, augmentado com a ominosa observação: Vam emendadas pelo Sancto Officio, como se manda

no Cathalogo deste Regno. O merecimento desta edição é infinitamente inferior ao da 1a Pois achando-se nella reproduzidos todos os erros typographicos e indecentes chocarrices da primeira, bem se póde conjecturar que qualidade de emendas temos a esperar do gôsto e litteratura daquelle pio tribunal. Versos omittidos, outros rediculamente em todo ou em parte alterados, coplas cortadas, e finalmente paginas inteiras a eito supprimidas, E estes lugares mutilados, como é de suppor, não são dos menos interessantes de Gil Vicente. Como poderia, por exemplo, um inquisidor que aspirasse a bispar, ler sem se alterar, e sem fulminar immediatamente o formi~ davel veto a similhantes passagens:

E a gente religiosa
Mandae-lhes velas bispaes,
A cera de renda grossa,
Os pavios de casaes,

E logo não porão grosa.

Fecharemos estas noticias bibliographicas com advertir que ultimamente, sahirão impressos alguns autos e comedias castelhanas:do: nosso poeta na interessante collecção intitulada: Teatro Español anterior à Lope de Vega. Gotha, 1833.

Em quanto ao plano que seguimos na presente edição, depois de devida reflexão, adoptamos o seguinte, que esperamos mereça a approvação do publico litterario. Corrigimos todo o logar onde nos pareceo manifesto o erro typographico, sem nos deixarmos acanhar pela

cega predilecção que tanto voga entre nós pelas antigas edições, (*) (superstição que o atrazamento em que a arte typographica se achava então em Portugal, de maneira alguma authoriza) que faz com que muitos tenhão pelos logares claramente corrompidos, a mesina veneração que a misterios que não podem comprehender. Emquanto á ortographia, assentamos aproximar-nos da moderna, nunca porém de maneira que a pronúncia soffresse alteração, dando uma voz moderna pela antiga. Conservamos pois sam e som por sou, devação por devoção, concrusão por conclusão e outras similhantes.

No fim do 3o vol. encontrará o leitor uma taboa glossaria mostrando a significação conjectural de alguns termos antiquados e rusticos, portuguezes e castelhanos, que se não encontrão nos melhores diccionarios das duas linguas.

Finalmente assentamos nada omittir do que se achava impresso na 1a ed. E nesta parte não dissimularemos as objeções que contra si tem este systhema. Bem sentimos que nas obras do nosso poeta se encontrão passagens, que por ineptas e despidas de todo o

(*) Ainda não ha muito tempo appareceo em Lisboa uma edição da Peregrinação de Fernan Mendes Pinto, em que o editor se preza de ter seguido o texto da 1a, regeitando a segunda, aindaque correcta e augmentada pelo Autor. Mas que muito, se a sumptuosa edição dos Lusiadas de Paris 1817, resuscitou e conservou como bellezas poeticas, os erros da 1a corregidos por Camões na 2?!

alento poetico, que em outras partes o autor mostrou possuir em eminente grau, são summamente fastidiosas á leitura e prejudiciaes em certo modo á reputação do nosso poeta. Mas outras principalmente, por sua indecencia e por peccarem contra as leis do decoro, não estão em harmonia com os costumes e civilização do nosso seculo, supposto que aquellas indecentes bufonerias se representassem no Paço, muitas vezes na Igreja, e fizessem as delicias de duas brilhantes côrtes. Taes logares muitos estimarião ver inteiramente supprimidos ou modificados, e esse sería o nosso parecer, a não ser esta consideração. Obras como as de Gil Vicente (e assim é quasi todo o drama comico do seu tempo) não se imprimem hoje em dia com o mesmo fim que na epocha em que forão escriptas. Então Gil Vicente era lido, representava-se, gostava-se e talvez passagens bem reprehensiveis fossem as mais applaudidas; emfim depois de impresso, tornou-se propriedade do povo, que, nas horas de ocio, nelle achava um alegre passatempo e um rico thesouro de rifões e dictados para colorir e animar suas conversas, e que seus leitores de paes a filhos transmittirão á posteridade. Agora porém estas obras pertencem ao dominio da historia da historia da litteratura, dos costumes, e so nas mãos dos litteratos é que tem de andar. E quem não folgará de encontrar nestas antigualhas um painel verdadeiro dos tempos dos nossos maiores? O litterato passa por essas indecencias que encontra entre muita belleza verdadeira, e não culpa o

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