thias de um rapaz de dezoito ou dezenove annos, alegre, formoso, robusto. Rimava, mas por galanteria e folgança. As mulheres, a meza, os amigos, o janotismo: eis-ahi as suas preoccupações e os seus exercicios. Se cogitava no futuro, a sua idéa era decerto ganhar a vida na côrte, ou pelas armas, aventurosamente. Presumido, as camisas bordadas, os pellotes de velludo, as ceroulas de chamalote, as carapuças de solia e os chapéos de abas exaggeradas, que o faziam conhecido, traziam-n'o então muito mais occupado do que outras cogitações. Ruivo, de olhos azues, rasgados, com seus bigodes viris, os labios cheios, a testa larga mas «algum tanto carregada», Camões encantava as mulheres, como bom portuguez, dispondo d'aquelle ar amavioso de que falla o Fernam Lopes e que Bernardim Ribeiro celebrava no seu romance da Menina e Moça. Retratou-se a si proprio no Leonardo: soldado bem disposto Manhoso, cavalleiro e namorado A quem amor não dera um só desgosto. Por sobre namorado, buliçoso e ardente, achavam-n'o em todas as contendas tão frequentes da vida. de uma côrte que era o viveiro de capitães destinados a irem por todo o mundo dominal-o com a sua valentia. Querido como rapaz alegre e brioso, ninguem descortinava n'elle o que viria a ser; pois nunca passou por prodigio na infancia, triste sorte que, por via de regra, só produz enfesados ou monstruosidades. Embora poetasse já, Camões era um rapaz como os outros n'uma côrte accentuadamente litteraria; mas tinha a mais que mui tos outros uma sensibilidade de tal modo exaggerada, que na primeira crise decidiria da sua vida. O mundo interior não o dominava ainda, mas a erupção dar-se-hia ao primeiro abalo. * = Esse abalo foi a sua paixão pela filha de D. Antonio de Lima, que era mordomo-mór do infante D. Duarte. Chamava-se Catharina; Camões (Luis Liso, ou Niso) chamou-lhe Natercia. Estavam em moda os anagrammas eruditos: Rabelais diziase Acofribas-Nasier, ou Rabie-læsus; Jean Turquet era Naturequite; Calvino, Jean-Cul; Long-se-desavoye significava Louise de Savoie. Viu-a pela primeira vez resando n'uma egreja, como Petrarcha á sua Laura em Santa-Clara de Avinhão: Amor alli, que o tempo me aguardava A vista da razão me salteava. 1 E Natercia, transfigurada pela imaginação do poeta, foi para elle o que a mulher é para a natureza: o symbolo do amor universal, como Beatrice e Fiammeta, Laura e Catharina de Vancel, Sofronia, Ginevra e Theodora. No recinto luminoso da egreja, Natercia apparecia a Camões como uma revelação do Inconsciente, abrindo ao seu espirito horisontes ainda não vistos, circulos de um mundo por onde o eterno feminino o levava, como Virgilio a Dante, guiando-o pela mão. 1 Sonn. 77. Desde logo a flôr da sua alegria ingenua de rapaz bulhento se achou transformada n'um desejo ardente de amor, em cujo nucleo estava o côro de sentimentos epicos desabrochados successivamente com o tempo, entretecido na amarga corôa de afflicções e espinhos lancinantes. A sua virgindade sentimental quebrava-se, a sua ingenuidade fugia. O amor fazia-o homem. Começavam-lhe os tormentos da vida; o maior de todos os quaes seria a ambição epica, acordada quando o menor, as torturas do seu amor humano, lhe trouxessem a primeira crise sentimental. As crueldades da sua amada são como os primeiros balanços da nau, ao embate das ondas nuncias de tempestade: Ah! Natercia cruel! quem te desvia Que foi d'aquella fé que tu me deste? Quando esses teus olhos n'outro puzeste, Por toda a sua luz que eras só minha? 1 Natercia sorria enygmaticamente com o sorriso. da Joconda, arrastando o poeta para a via-sacra das torturas que lhe haviam de revelar o seu destino. A mulher é uma sereia por cuja voz enganadora falla a verdade. Natercia perdia o; mas, perdendo-o, ganhava o para a sua missão. Quando muitos annos depois, em 1558, o poeta, encarcerado em Goa, já na plena posse do seu genio e na completa 1 Sonn. 147. consciencia do seu destino, soube que em Lisboa morrêra essa que fôra para elle a flôr mystica da sua vida, soltou um grito como os de Job: O dia, hora em que naci moura e pereça A luz lhe falte, o sol se escureça, As pessoas pasmadas de ignorantes, Oh gente temerosa, não te espantes, A mesma alma, porém, que rugia com desespero, chorava meigamente como pomba n'estes versos, porventura os mais bellos de Camões: Alma minha gentil, que te partiste Se lá no assento Ethereo, onde subiste, Roga a Deus que teus annos encurtou, A expressão é inteiramente diversa. Além sente se o desespero, a dôr, a furia contra uma punhalada cruel do destino. Adivinha-se como a imagem da amante enchia absorventemente a vida do poeta, e de que loucuras elle teria sido capaz, quando em moço, na côrte, com a alma ainda em botão, na embriaguez de uma paixão irritante, ou soffria as consequencias dos caprichos da rapariga, ou dava largas á sua vaidade imprudente pelos obsequios com que ella o favorecia. Ou por se ter batido em duello com algum rival, ou porque o colhessem no dialogo de alguma egloga, o facto é que o rapaz foi banido da côrte. Attribuem tambem o desterro a invejas e rivalidades litterarias provocados já pela gloria do poeta; dando-lhe egualmente como causa a comedia de Elrei Seleuco, transparente satyra a D. Manoel que em terceiras nupcias desposára a noiva do filho, D. Leonor d'Austria. Dos lamentos de Camões parece inferir-se que havia razão de queixa contra Natercia. Arrependia-se do tempo em que fôra livre, e escrevia: A chaga que, Senhora, me fizestes, Que bem descobre o intento que tivestes. 3 Exilado em 1546, Camões vae a Coimbra, onde vivia ainda o tio D. Bento, e de lá volta breve a cumprir o desterro, fixando-se em Constança, sobre o Tejo. Longe da côrte e das suas tentações, longe da fascinação do olhar de Joconda, Camões, em frente 1 Eglog. 3. 2 Sonn. 77. -3 Sonn. 123. |