Aos homens hum só homem pôz espanto, E o pôz a toda a humana natureza; Que de homem teve o ser, de Anjo a pureza, Porqu'antes que nascesse era ja Santo.
Propheta foi na Mãe; em fim, foi tanto,
Qu'entre os nascidos houve a mór alteza; Que da Luz, sem a vêr, vio a grandeza, Tendo por trompa o Verbo Sacrosanto. Aquella voz foi elle sonorosa,
No concavo dos Orbes resonante, E que a Carne inculpavel baptizou; Quem do mór Pae ouvio a voz amante; Quem a subtil pergunta industriosa Com sincera resposta socegou.
Vós só podeis, sagrado Evangelista, Angelico abrazado Seraphim,
E na sciencia mais alto Cherubim,
he mais sabio Amor ser Coronista.
Divina e real Aguia, cuja vista
Vio o qu'he sem princípio, o qu'he sem fim, De Jacob mais querido Benjamim, Quem mais campea de Joseph na lista.
Apostolo, e Propheta, e Patriarca,
Ao Principe dos Ceos o mais acceito, Qu'em seu seio dormindo então mais via.
A quem o mesmo Deos por irmão marca; Quem por filho da Mãe unica feito, Em corpo e alma goza o claro dia.
Como louvarei eu, Seraphim santo, Tanta humildade, tanta penitencia, Castidade, e pobreza, e paciencia, Com este meu inculto e rudo canto? Argumento que ás Musas põe espanto, Que faz muda a grandiloqua eloquencia. Oh imagem, qu'a Divina Providencia De si viva em vós fez para bem tanto! Fostes de Santos huma rara mina;
Almas de mil a mil ao Ceo mandastes Do mundo, que perdido reformastes.
E não roubaveis só com a doutrina As vontades mortaes, mas a Divina; Pois os seus rubis cinco lhe roubastes.
Ditosas almas, que ambas juntamente Ao ceo de Venus e de Amor voastes, Onde hum bem que tão breve cá lograstes, Estais logrando agora eternamente;
Aquelle estado vosso tão contente, Que só por durar pouco triste achastes, Por outro mais contente ja o trocastes, Onde sem sobresalto o bem se sente.
Triste de quem cá vive tão cercado, Na amorosa fineza, de hum tormento Que a gloria lhe perturba mais crescida! Triste, pois me não val o soffrimento, E Amor para mais damno me tee dado Para tão duro mal tão larga vida!
Contente vivi ja, vendo-me isento
Deste mal de que a muitos queixar via: Chamão-lhe amor; mas eu lhe chamaria Discordia e semrazão, guerra e tormento. Enganou-me co'o nome o pensamento: (Quem com tal nome não se enganaria?) Agora tal estou, que temo hum dia Em que venha a faltar-me o soffrimento. Com desesperação, e com desejo
Me paga o que por elle estou passando, E inda está do meu mal mal satisfeito.
Pois sobre tantos damnos inda vejo
Para dar-me outros mil hum olhar brando, E para os não curar hum duro peito..
Deixa Apollo o correr tão apressado,
Não sigas essa Nympha tão ufano: Não te leva o amor, leva-te o engano Com sombras de algum bem a mal dobrado.
E quando seja amor, será forçado;
E se forçado fôr, será teu dano.
Hum parecer não queiras mais que humano Em hum sylvestre adôrno vêr tornado. Não percas por hum vão contentamento A vista que te faz viver contente; Modera em teu favor o pensamento.
Porque menos mal he, tendo-a presente, Soffrer sua crueza, e teù tormento, Que sentir sua ausencia eternamente.
Nas cidades, nos bosques, nas florestas, Nos valles, e nos montes, teus louvores Sempre te cantem musicos pastores Nas manhãas frias, nas ardentes sestas. E neste Templo donde manifestas
E repartes agora teus favores,
Com psalmos, hymnos, e com varias flores Sejão celebres sempre as tuas festas. Estes te offreção pés, ess' outros mãos; D'aquelles pendão sobre os teus altares Monstros do mar, de servidão prisões. Que eu cuidados, enganos e affeições, Muito maiores monstros, e milhares Te deixo aqui de pensamentos vãos.
Vi queixosos de Amor mil namorados, E nenhuns inda vi com seus louvores; E aquelle que mais chora o mal de amores, Vejo menos fugir de seus cuidados.
Se das dores de Amor sois mal tratados, Porque tanto buscais de Amor as dôres? E se tambem as tendes por favores, Porque dellas fallais como aggravados? Não queirais alegria achar algua
No Amor, porque he composto de tristeza, Na fortuna que acheis mais agradavel. Nella e nelle achei sempre a mesma lũa, Em quem nunca se vio outra firmeza, Que não seja a de ser sempre mudavel.
Se lagrimas choradas de verdade
O marmore abrandar podem mais duro, Porque as minhas que nascem de amor puro Hum coração não rendem a piedade? Por vós perdi, Senhora, a liberdade, E nem da propria vida estou seguro. Rompei desse rigor o forte muro, Não passe tanto avante a crueldade.
prezar de desprêzos dae ja fim: Não vos chamem cruel; nome devido A quem se ri de quem suspirá e ama. Abrandai esse peito endurecido,
Por o que toca a vós, ja não por mim, Que eu aventuro a vida, e vós a fama.
Ja me fundei em vãos contentamentos, Quando delles vivi todo enganado
De hum phantastico bem, e de hum cuidado, De que só cuidão cegos pensamentos.
Passava dias, horas e momentos, Deste enleio de amores tão pagado, Que tinha só por bem-aventurado Quem só por elles mais bebia os ventos. Mas agora que ja cahi na conta,
Desengana-me quanto me enganava; Que tudo o tempo dá, tudo descobre. O Amor mais caudaloso menos monta. Qu'he de gostos mais rico eu ignorava, Aquelle que de amores he mais pobre.
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