Os fios d'ouro, as tranças encrespadas, Os olhos rutilando chammas vivas; Que hum peito desfizera de diamante. Hum não sei que suave respirando, Que andando co'os divinos pés tocava; Ou d'inveja das hervas que pizavão, porque tudo ant'ella se baixava. Ou Não houve cousa, emfim, Que não pasmasse della, e eu de mim. Porque, quando vi dar entendimento Delles em mi por trôco traspassava. Oh que gentil partido, Trocar o ser do monte sem sentido, Por o qu'em hum juizo humano estava! Tirar commum proveito de meu dano. Assi qu'indo perdendo o sentimento Cada hum com seu contrário em hum sogeito. Quem será que não julgue por- celeste Que venha o appetite a ser razão? Aqui senti d'Amor a mór fineza, Não sei quem m'escrevia Dentro n'alma co'as letras da memoria O mais deste processo, Co'o claro gesto juntamente impresso, Eu não a escrevo, d'alma a trasladei. Canção, se quem te lêr Não crêr dos olhos lindos o que dizes, Os sentidos humanos (lhe responde) Que a falta suppra a fé do entendimento. CANÇÃO VIII Manda-me Amor que cante o qu'a alma sente, Por captivo de gesto tão formoso, Rompe e desfaz a gloria do tormento Que bem sei que o que canto Ha d'achar menos credito qu'espanto. Eu yivia do cego Amor isento, Porém tão inclinado a viver preso, Que me dava desgosto a liberdade. Hum natural desejo tinha acceso D'algum ditoso e doce pensamento, Que m'illustrasse a insana mocidade. Tornava do anno ja a primeira idade; A revestida terra s'alegrava, Quando o Amor me mostrava De fios d'ouro as tranças desatadas Os olhos rutilando lume vivo, As rosas entre a neve semeadas: Que juntos move em mi desejo e medo. Hum não sei que suave respirando, Que, andando, co'os ditosos pés tocava; Ou d'inveja das hervas que pizavão, Ои porque tudo ant'elles se baixava: O ar, o vento, o dia, D'espiritos continuos influia. E quando vi que dava entendimento A cousas fóra delle, imaginei Que milagres faria em mi que o tinha: ᏙᎥ que me desatou da minha lei, Privando-me de todo sentimento, E em outra transformando a vida minha. Contra o poder e ordem da natura, Á rudeza das hervas e das fontes, Que conhecerão logo a vista Fiquei eu só tornado pura. Quasi em hum rudo tronco d'admirado. Despois de ter perdido o sentimento, Em que toda a razão se convertia. Mas não sei quem no peito m'affirmava Em doce paz estava Com seu contrário proprio em hum sogeito. Por alta e grande certamente approvo Que hum desejo, sem ser, seja razão. Despois d'entregue ja ao meu desejo, |