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Os fios d'ouro, as tranças encrespadas,
Ao doce vento esquivas;

Os olhos rutilando chammas vivas;
E as rosas entre a neve semeadas;
Co'o riso tão galante,

Que hum peito desfizera de diamante.

Hum não sei que suave respirando,
Causava hum admiravel, novo espanto,
Que as cousas insensiveis o sentião.
Alli as garrulas aves, levantando
Vozes não ordinarias em seu canto,
Como eu no meu desejo s'encendião.
As fontes crystallinas não corrião,
D'inflammadas na vista linda e pura;
Florecia a verdura,

Que andando co'os divinos pés tocava;
Os ramos se baixavão,

Ou d'inveja das hervas que pizavão, porque tudo ant'ella se baixava.

Ou

Não houve cousa, emfim,

Que não pasmasse della, e eu de mim.

Porque, quando vi dar entendimento
Ás
cousas que o não tinhão, o temor
Me fez cuidar qu'effeito em mi faria.
Conheci-me não ter conhecimento:
Porém só nisto o tive, porque Amor
Mo deixou para ver o que podia.
Tanta vingança Amor de mi queria,
Que mudava a humana natureza
Nos montes, e a dureza

Delles em mi por trôco traspassava.

Oh

que gentil partido,

Trocar o ser do monte sem sentido,

Por o qu'em hum juizo humano estava!
Olhae que doce engano!

Tirar commum proveito de meu dano.

Assi qu'indo perdendo o sentimento
A parte racional, m'entristecia
Vê-la a hum appetite submettida.
Mas dentro n'alma o fim do pensamento,
Por tão sublime causa, me dizia
Qu'era razão ser a razão vencida.
Assi que quando a via ser perdida,
A mesma perdição a restaurava:
E em mansa paz estava

Cada hum com seu contrário em hum sogeito.
Oh grão concerto este!

Quem será que não julgue por- celeste
A causa donde vem tamanho effeito,
Que faz n'hum coração

Que venha o appetite a ser razão?

Aqui senti d'Amor a mór fineza,
Como foi vêr sentir o insensivel,
E o vêr a mi de mi proprio perder-me;
E, emfim, senti negar-se a natureza;
Por onde cri que tudo era possivel
Aos lindos olhos seus, senão querer-me.
Despois que ja senti desfallecer-me,
Em lugar do sentido que perdia,

Não sei quem m'escrevia

Dentro n'alma co'as letras da memoria

O mais deste processo,

Co'o claro gesto juntamente impresso,
Que foi a causa de tão longa historia.
Se bem a declarei,

Eu não a escrevo, d'alma a trasladei.

Canção, se quem te lêr

Não crêr dos olhos lindos o que dizes,
Por o que a si s'esconde;

Os sentidos humanos (lhe responde)
Não podem dos divinos ser juizes,
Senão hum pensamento

Que a falta suppra a fé do entendimento.

CANÇÃO VIII

Manda-me Amor que cante o qu'a alma sente,
Caso que nunca em verso foi cantado,
Nem d'antes entre a gente acontecido.
Assi me paga em parte o meu cuidado;
Pois que quer que me louve e represente
Quão bem soube no mundo ser perdido.
Sou parte, e não serei da gente crido:
Mas he tamanho o gosto de louvar-me,
E de manifestar-me

Por captivo de gesto tão formoso,
Que todo o impedimento

Rompe e desfaz a gloria do tormento
Peregrino, suave e deleitoso;

Que bem sei que o que canto

Ha d'achar menos credito qu'espanto.

Eu yivia do cego Amor isento,

Porém tão inclinado a viver preso,

Que me dava desgosto a liberdade. Hum natural desejo tinha acceso D'algum ditoso e doce pensamento, Que m'illustrasse a insana mocidade. Tornava do anno ja a primeira idade; A revestida terra s'alegrava,

Quando o Amor me mostrava

De fios d'ouro as tranças desatadas
Ao doce vento estivo;

Os olhos rutilando lume vivo,

As rosas entre a neve semeadas:
O gesto grave e ledo,

Que juntos move em mi desejo e medo.

Hum não sei que suave respirando,
Causava hum desusado e novo espanto,
Que as cousas insensiveis o sentião.
Porque as garrulas aves, entretanto
Vozes desordenadas levantando,
Como eu em meu desejo s'encendião,
As fontes crystallinas não corrião,
Inflammadas na vista clara e pura;
Florecia a verdura,

Que, andando, co'os ditosos pés tocava;
As ramas se baixavão,

Ou d'inveja das hervas que pizavão,

Ои

porque tudo ant'elles se baixava:

O ar, o vento, o dia,

D'espiritos continuos influia.

E quando vi que dava entendimento

A cousas fóra delle, imaginei

Que milagres faria em mi que o tinha:

ᏙᎥ

que me desatou da minha lei, Privando-me de todo sentimento,

E em outra transformando a vida minha.
Com tamanhos poderes d'Amor vinha,
Que o uso dos sentidos me tirava.
E não sei como o dava

Contra o poder e ordem da natura,
Ás arvores, aos montes,

Á rudeza das hervas e das fontes,

Que conhecerão logo a vista

Fiquei eu só tornado

pura.

Quasi em hum rudo tronco d'admirado.

Despois de ter perdido o sentimento,
D'humano hum só desejo me ficava,

Em

que toda a razão se convertia.

Mas não sei quem no peito m'affirmava
Que por tão alto e doce pensamento,
Com razão, a razão se me perdia.
Assi que quando mais perdida a via,
Na sua mesma perda se ganhava.

Em doce paz estava

Com seu contrário proprio em hum sogeito.
Oh caso estranho e novo!

Por alta e grande certamente approvo
A causa, donde vem tamanho effeito,
Que faz n'hum coração

Que hum desejo, sem ser, seja razão.

Despois d'entregue ja ao meu desejo,
Ou quasi nelle todo convertido,
Solitario, sylvestre e inhumano,
Tão contente fiquei de ser perdido,

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