Que me parece tudo quanto vejo Escusado, senão meu proprio dano. Bebendo este suave e doce engano, A trôco dos sentidos que perdia, ᏙᎥ que Amor m'esculpia
Dentro n'alma a figura illustre e bella, A gravidade, o siso,
A mansidão, a graça, o doce riso.
E
porque não cabia dentro nella De bens tamanhos tanto,
Sahe por a boca convertido em canto.
Canção, se te não crerem Daquelle claro gesto quanto dizes, Por o que se lhe esconde; Os sentidos humanos (lhe responde) Não podem dos divinos ser juizes, Senão hum pensamento, Que a falta suppra a fé do entendimento.
Tomei a triste pena Ja de desesperado
De vos lembrar as muitas que padeço;
Vendo
que me condena
O mal que me tratais, e o que mereço. Confesso que conheço Qu'em parte a causa dei
Ao mal em que me vejo, Pois sempre o meu desejo
A tão largas promessas entreguei;
Mas não tive suspeita Que seguisseis tenção tão imperfeita.
S'em vosso esquecimento Tão condemnado estou,
Como os sinaes demostrão, que mostrais; Neste vivo tormento, Lembranças mais não dou
Que as que desta razão tomar queirais: Olhac que me tratais
Assi de dia em dia Com vossas esquivanças; E as vossas esperanças, vãamente ja m'enriquecia, Renovão a memoria;
Pois com a ter de vós só tenho gloria.
E s'isto conhecesseis
Ser verdade mais pura
Do que d'Arabia o ouro reluzente;
Inda que não quizesseis, Essa condição dura
Em branda se mudára facilmente.
Eu, vendo-me innocente, Senhora neste caso, Bem no arbitrio o puzera De quem sentença dera,
Com que o que he justo se mostrasse raso; Se, emfim, não receára
Que a vós por mi, e a mi por vós matára.
Em vós escrita vi Vossa grande dureza,
E n'alma escrita está, que de vós vive: Não que acabasse alli Sua grande firmeza
O triste desengano qu'então tive; Porque antes que me prive A dor de meus sentidos, Ao penoso tormento
Acode o entendimento
Com dous fortes soldados guarnecidos De rica pedraria,
Que ficão sendo minha luz e guia.
Destes acompanhado Estou pôsto sem medo
A tudo o que o fatal destino ordene:
Póde ser que cansado, Ou seja tarde, ou cedo, pena
de penar-me, me despene. E quando me condene
(Qu'he o que mais espero) Inda a penas maiores; Perdidos os temores,
Por mais que venhão, não direi, não quero. Estou, emfim, tão forte,
Que não póde mudar-me a propria morte.
Canção, se ja não queres Crêr tanta crueldade,
Lá vae onde verás minha verdade.
CANÇÃO X
Junto d'hum sêcco, duro, esteril monte, Inutil e despido, calvo e informe, Da natureza em tudo aborrecido; Onde nem ave vôa, ou fera dorme, Nem corre claro rio, ou ferve fonte, Nem verde ramo faz doce ruido; Cujo nome, do vulgo introduzido, vulpu vulgar He Feliz, por antiphrasi infelice;
O qual a natureza Situou junto á parte,
Aonde hum braço d'alto mar reparte A Abassia da Arabica aspereza, Em que fundada ja foi Berenice, Ficando á parte, donde O sol, que nella ferve, se l'esconde;
O cabo se descobre, com que a costa Africana, que do Austro vem correndo, Limite faz, Arómata chamado: Arómata outro tempo; que volvendo • A roda, a ruda lingua mal composta Dos proprios outro nome lhe tee dado. Aqui, no mar, que quer apressurado Entrar por a garganta deste braço,
Me trouxe hum tempo e teve Minha fera ventura.
Aqui nesta remota, áspera e dura Parte do mundo, quiz que a vida breve Tambem de si deixasse hum breve espaço; Porque ficasse a vida
Por o mundo em pedaços repartida.
Aqui me achei gastando huns tristes dias, Tristes, forçados, máos e solitarios, De trabalho, de dôr, e d'ira cheios: Não tendo tãosómente por contrarios A vida, o sol ardente, as águas frias, Os ares grossos, férvidos e feios, Mas os meus pensamentos, que são meios Para enganar a propria natureza,
Tambem vi contra mi; Trazendo-me á memoria
Alguma ja passada e breve gloria, Qu'eu ja no mundo vi, quando vivi; Por me dobrar dos males a aspereza, Por mostrar-me que havia No mundo muitas horas d'alegria.
Aqui 'stive eu com estes pensamentos Gastando tempo e vida; os quaes tão alto Me subião nas azas, que cahia
(Oh vêde se seria leve o salto!) De sonhados e vãos contentamentos Em desesperação de vêr hum dia. O imaginar aqui se convertia Em improvisos choros e em suspiros, Que rompião os ares. Aqui a alma captiva,
Chagada toda, estava em carne viva, De dôres rodeada e de pezares, Desamparada e descoberta aos tiros Da soberba Fortuna; Soberba, inexoravel e importuna.
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