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Que me parece tudo quanto vejo
Escusado, senão meu proprio dano.
Bebendo este suave e doce engano,
A trôco dos sentidos que perdia,
ᏙᎥ que Amor m'esculpia

Dentro n'alma a figura illustre e bella, A gravidade, o siso,

A mansidão, a graça, o doce riso.

E

porque não cabia dentro nella
De bens tamanhos tanto,

Sahe por a boca convertido em canto.

Canção, se te não crerem Daquelle claro gesto quanto dizes, Por o que se lhe esconde; Os sentidos humanos (lhe responde) Não podem dos divinos ser juizes, Senão hum pensamento, Que a falta suppra a fé do entendimento.

CANÇÃO IX

Tomei a triste pena
Ja de desesperado

De vos lembrar as muitas que padeço;

Vendo

que me condena

A ficar eu culpado

O mal que me tratais, e o que mereço.
Confesso que conheço
Qu'em parte a causa dei

Ao mal em que me vejo,
Pois sempre o meu desejo

A tão largas promessas entreguei;

Mas não tive suspeita
Que seguisseis tenção tão imperfeita.

S'em vosso esquecimento
Tão condemnado estou,

Como os sinaes demostrão, que mostrais;
Neste vivo tormento,
Lembranças mais não dou

Que as que desta razão tomar queirais:
Olhac que me tratais

Assi de dia em dia
Com vossas esquivanças;
E as vossas esperanças,
vãamente ja m'enriquecia,
Renovão a memoria;

Pois com a ter de vós só tenho gloria.

De

que

E s'isto conhecesseis

Ser verdade mais pura

Do que d'Arabia o ouro reluzente;

Inda que não quizesseis,
Essa condição dura

Em branda se mudára facilmente.

Eu, vendo-me innocente,
Senhora neste caso,
Bem no arbitrio o puzera
De quem sentença dera,

Com que o que he justo se mostrasse raso;
Se, emfim, não receára

Que a vós por mi, e a mi por vós matára.

Em vós escrita vi
Vossa grande dureza,

E n'alma escrita está, que de vós vive:
Não que acabasse alli
Sua grande firmeza

O triste desengano qu'então tive;
Porque antes que me prive
A dor de meus sentidos,
Ao penoso tormento

Acode o entendimento

Com dous fortes soldados guarnecidos
De rica pedraria,

Que ficão sendo minha luz e guia.

Destes acompanhado
Estou pôsto sem medo

A tudo o que o fatal destino ordene:

Póde ser que cansado, Ou seja tarde, ou cedo, pena

Com

de penar-me, me despene. E quando me condene

(Qu'he o que mais espero)
Inda a penas maiores;
Perdidos os temores,

Por mais que venhão, não direi, não quero. Estou, emfim, tão forte,

Que não póde mudar-me a propria morte.

Canção, se ja não queres
Crêr tanta crueldade,

Lá vae onde verás minha verdade.

CANÇÃO X

Junto d'hum sêcco, duro, esteril monte,
Inutil e despido, calvo e informe,
Da natureza em tudo aborrecido;
Onde nem ave vôa, ou fera dorme,
Nem corre claro rio, ou ferve fonte,
Nem verde ramo faz doce ruido;
Cujo nome, do vulgo introduzido, vulpu
vulgar
He Feliz, por antiphrasi infelice;

O qual a natureza
Situou junto á parte,

Aonde hum braço d'alto mar reparte
A Abassia da Arabica aspereza,
Em
que fundada ja foi Berenice,
Ficando á parte, donde
O sol, que nella ferve, se l'esconde;

O cabo se descobre, com que a costa
Africana, que do Austro vem correndo,
Limite faz, Arómata chamado:
Arómata outro tempo; que volvendo
• A roda, a ruda lingua mal composta
Dos proprios outro nome lhe tee dado.
Aqui, no mar, que quer apressurado
Entrar por a garganta deste braço,

Me trouxe hum tempo e teve
Minha fera ventura.

Aqui nesta remota, áspera e dura
Parte do mundo, quiz que a vida breve
Tambem de si deixasse hum breve espaço;
Porque ficasse a vida

Por o mundo em pedaços repartida.

Aqui me achei gastando huns tristes dias,
Tristes, forçados, máos e solitarios,
De trabalho, de dôr, e d'ira cheios:
Não tendo tãosómente por contrarios
A vida, o sol ardente, as águas frias,
Os ares grossos, férvidos e feios,
Mas os meus pensamentos, que são meios
Para enganar a propria natureza,

Tambem vi contra mi;
Trazendo-me á memoria

Alguma ja passada e breve gloria,
Qu'eu ja no mundo vi, quando vivi;
Por me dobrar dos males a aspereza,
Por mostrar-me que havia
No mundo muitas horas d'alegria.

Aqui 'stive eu com estes pensamentos
Gastando tempo e vida; os quaes tão alto
Me subião nas azas, que cahia

(Oh vêde se seria leve o salto!)
De sonhados e vãos contentamentos
Em desesperação de vêr hum dia.
O imaginar aqui se convertia
Em improvisos choros e em suspiros,
Que rompião os ares.
Aqui a alma captiva,

Chagada toda, estava em carne viva,
De dôres rodeada e de pezares,
Desamparada e descoberta aos tiros
Da soberba Fortuna;
Soberba, inexoravel e importuna.

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