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Que todo o phantasiar desatinava,
Estes enganos punha em desconcerto.
Aqui o adivinhar, e o ter por certo
Qu'era verdade quanto adivinhava,
E logo o desdizer-me de corrido;
Dar ás cousas que via outro sentido;
E para tudo, emfim, buscar razões:
Mas erão muitas mais as semrazões.

Não sei como sabía estar roubando
Co'os raios as entranhas, que fugião
Par'ella por os olhos subtilmente!
invisiveis me sahião;

Pouco a pouco

Bem como do véo humido exhalando
Está o subtil humor o sol ardente.

O gesto puro, emfim, e transparente,
Para quem fica baixo e sem valia
Este nome de bello e de formoso;
O doce e piedoso

Mover d'olhos, que as almas suspendia,
Forão as hervas magicas, que o Ceo
Me fez beber: as quaes por longos annos
N'outro ser me tiverão transformado,
E tão contente de me vêr trocado,
Que as mágoas enganava co'os enganos;
E diante dos olhos punha o véo,
Que m'encobrisse o mal que assi cresceo:
Como quem com affagos se criava
Daquella para quem crescido estava.

Pois quem póde pintar a vida ausente,
Com hum descontentar-me quanto via,
E aquell'estar tão longe donde estava;

O fallar sem saber o que dizia;
Andar sem vêr por onde, e juntamente
Suspirar sem saber que suspirava?
Pois quando aquelle mal m'atormentava,
E aquella dór, que das Tartareas ágoas
Sahio ao mundo, e mais que todas doe,
Que tantas vezes soe

Duras íras tornar em brandas mágoas?
Agora co'o furor da mágoa irado,
Querer, e não querer deixar de amar;
E mudar n'outra parte, por vingança,
O desejo privado d'esperança,
Que tão mal se podia ja mudar?
Agora a saudade do passado
Tormento, puro, doce e magoado,
Que converter fazia estes furores
Em magoadas lagrimas d'amores?

Que desculpas comigo só buscava,
Quando o suave Amor me não soffria
Culpa na cousa amada, e tão amada!
Erão, emfim, remedios que fingia
O medo do tormento, qu'ensinava
A vida a sustentar-se d'enganada.
Nisto huma parte della foi passada;
Na qual se tive algum contentamento
Breve, imperfeito, timido, indecente,
Não foi senão semente
D'hum cumprido, amarissimo tormento.
Este curso contino de tristeza,
Estes passos vãamente derramados,
Me forão apagando o ardente gosto,
Que tão de siso n'alma tinha pôsto,

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Daquelles pensamentos namorados
Com que criei a tenra natureza,
Que do longo costume da aspereza,
Contra quem força humana não resiste,
Se converteo no gosto de ser triste.

Dest'arte a vida em outra fui trocando;
Eu não, mas o destino fero, irado;
Qu'eu, inda assi, por outra a não trocára.
Fez-me deixar o patrio ninho amado,
Passando o longo mar, que ameaçando
Tantas vezes m'esteve a vida chara.
Agora exprimentando a furia rara
De Marte, que nos olhos quiz que logo
Visse, e tocasse o acerbo fructo seu,
E neste escudo meu

A pintura verão do infesto fogo.
Agora peregrino, vago, errante,
Vendo nações, linguagens e costumes,
Ceos varios, qualidades differentes,
Só por seguir com passos diligentes
A ti, Fortuna injusta, que consumes
As idades, levando-lhes diante
Huma esperança em vista de diamante:
Mas quando das mãos cahe se conhece
Que he fragil vidro aquillo que apparece.

A piedade humana me faltava,

A gente amiga ja contrária via,

No perigo primeiro; e no segundo,

Terra em que pôr os pés me fallecia,

Ar

para respirar se me negava,

E faltava-me, emfim, o tempo e o mundo.

Que segredo tão arduo e tão profundo,
Nascer para viver e para a vida,
Faltar-me quanto o mundo tee para
E não poder perdella,

ella!

Estando tantas vezes ja perdida!
Emfim, não houve trance de fortuna,
Nem perigos, nem casos duvidosos,
Injustiças daquelles que o confuso
Regimento do mundo, antigo abuso,
Faz sobre os outros homens poderosos,
Qu'eu não passasse, atado á fiel coluna
Do soffrimento meu, que a importuna
Perseguição de males em pedaços
Mil vezes fez á força de seus braços.

Não conto tantos males, como aquelle
Que despois da tormenta procellosa,
Os casos della conta em porto ledo;
Qu'inda agora a fortuna fluctuosa
A tamanhas miserias me compelle,
Que de dar hum só passo tenho medo.
Ja de mal que me venha não m'arredo,
Nem bem que me falleça ja pretendo;
Que para mi não val astucia humana.
De força soberana,

Da Providencia, emfim, Divina pendo.
Isto que cuido e vejo, ás vezes tomo
Para consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana quando lança
Os olhos no que corre, e não alcança
Se não memoria dos passados anos;
As ágoas qu'então bebo, e o pão que como,
Lagrimas tristes são, qu'eu nunca domo,

Senão com fabricar na phantasia
Phantasticas pinturas d'alegria.

Que se possivel fosse que tornasse
O tempo para traz, como a memoria,
Por os vestigios da primeira idade;
E de novo tecendo a antigua historia
De meus doces errores, me levasse
Por as flores que vi da mocidade;
E a lembrança da longa saudade
Então fosse maior contentamento,
Vendo a conversação leda e suave,

Onde huma e outra chave

Esteve de meu novo pensamento,
Os campos, as passadas, os sinais,
A vista, a neve, a. rosa, a formosura,
A graça, a mansidão, a cortezia,
A singela amizade, que desvia
Toda a baixa tenção, terrena, impura,
Como a qual outra alguma não vi mais....
Ah vãas memorias! onde me levais
O debil coração, qu'inda não posso
Domar bem este vão desejo vosso?

Não mais, Canção, não mais; qu'irei fallando,
Sem o sentir, mil annos; e se acaso
Te culparem de larga e de pezada;
Não póde ser (lhe dize) limitada
A ágoa do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
Co'o gosto do louvor, mas explicando
Puras verdades ja por mi passadas.
Oxalá forão fábulas sonhadas!

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