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Nos montes, e a rudeza

Delles em mim por troca traspassava:

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que gentil partido,

Trocar por dura aspereza o sentido
Que em mim quietamente repousava:
Olhai que doce engano,

Tirai comum proveito de meu dano.

O ser humano, sendo ja perdido,
A parte racional tambem perdia,
Ao appetito dando o mais da vida;
Mas o mudado attonito sentido
Por tão divina causa me dizia,
Que era razão, ser a razão vencida;
A mesma perdição a restaurava:

Em branda paz estava

Cada hum com seo contrario em hum sugeito;
Ó grão concerto este!

Quem será que não julgue por celeste
A causa donde vem tamanho effeito,
Que faz n'hum coração,

O proprio appetito ser razão.

Aqui senti d'amor a mór fineza,
Como foi vêr sentir o insensivel,
E ver a mim, de mim mesmo perder-me:
Emfim senti negar-se a natureza,
Por onde vi, que tudo era possivel
Aos bellos olhos seus, senão querer-me;
Depois, que ja senti desfalecer-me,
Em lugar do sentido que perdia,

Não sei quem me escrevia,

Dentro n'alma com letras de memoria

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Com o lindo gesto juntamente impresso, Que foi a causa de tão longa historia, Se bem a declarei,

Eu não escrevo, d'alma a trasladei.

Canção, se duvidarem poder tanto
Somente huma vista bella,

Dizei, que olhem a mim crerão a ella.

CANÇÃO XIX .

(INEDITA)

Crecendo vai meu mal d'ora em ora,
Creo, que quer fortuna que pereça
Segundo contra mim sua roda guia,
Pois, se a vida faltar, a pena creça,

Que por muito que creça, cruel Senhora,

Por fim, fim hade ter sua porfia.

Que ganhas em perder-me?

Que perdes em valer-me

Se á custa de me olhares brandamente Me podes ter contente?

E com me dares remedio, e bemfazeres Não deixarás por isso ser quem ereis?

Se minha pena esquiva e meu tormento,
Te desse de alegria alguma parte,
Contente viviria assim penando,
Porque, como pertendo contentar-te,
Me estaria suavemente deleitando,
Mas, claramente estou de ti notando,
Nesses teus olhos bellos

Se acerto hum'hora vellos,
Quão pouca conta tens com que padeço.
Ai que mui bem conheço,

Senhora, que por meu destino e sorte
Tens essa condição tão dura e forte.

Hum tigre, qualquer fera irracional,
Com sua asperidade tem amor,

E

por elle vive em paz silvestremente:

As aves, a maior e a menor,

Todos com hum instincto natural

Possuem amor, e o tem naturalmente:

E tu de perfeição tão excellente,

De tanta honestidade,

De tanta divindade,

De tanta galhardia e gentileza,
Somente tens crueza!

Creo que com razão a ti compete
O nome de cruel Anaxarete.

Se cuidas, que servir-te não mereço
Por minha indinidade e tua valia,
Engana-te, Senhora, o pensamento;
Que, se tens gentileza e galhardia,
Eu tenho fiel amor, de tanto preço,
Que me iguala com teu merecimento.
Mas, pouco presta ter tal fundamento
Quem tem contrario o fado;
Amar-te me he forçado;

Teu merecer altivo me faz força;
Mas, quanto mais m'esforça

A fé de meu amor e confiança,

Mais me desdenhas tu, com esquivança.

Que valle tua gentileza e alegre vista?
Que valle, que sejas tão formosa Dama,
Se tudo tens em ti tão submergido?
A fresca flor, que cuberta a rama,
A quem o tempo gasta sem ser vista,
Nenhuma cousa presta haver nacido;
O ouro, nada valle se está escondido
Em sua propria mina,

E não se tira e affina:

Nem a perola, em sua concha fea
Escondida na area;

Porque, sem a humana companhia
Nenhuma cousa tem sua valia.

Assim, sua graça summa sobrehumana,
Angelica figura grave e honesta,
0 preço perde estando em ti escondida;
Pois, teu cabello d'ouro e branca testa,
Rostro bello, florida idade ufana
Gastas sem companhia em deserta vida.
Ó ingrata, cruel desconhecida!

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campo que merece,

Ou que te agradece,

Gastares nelle idade tão sublime?

Das-lhe, o que não estima,

Das-lhe, com larga mão o que me negas, Em fim, a luz lhe dás, a mim as trevas.

Olha, que com pressa o tempo voa,
E como, com corrida pressurosa
Calladamente a fim tudo caminha;
Procura de gosar de tua pessoa;
Porque depois de seca a fresca rosa,

Sem preço, e sem valia fica a espinha;
Confeço-te, que a graça que ella tinha,
Se o tempo quiz tirar-lha,

O mesmo torna a dar-lha;*

E se perde a sazão que a ennobrece,
Ao outro anno reverdece;

Mas, tua sazão fresca se se perde,
Não cuides que jamais se torna verde.

Se te fez natureza tão preclara,
Se te dotou de graça e perfeição,
Com ella não assanhes a ventura;
Olha, que estás agora em tua sazão,
Não sejas para ti mėsma avara;

Vê, que a fruta hade colher-se se he madura;
Se deixares murchar tua formosura,

Que agora mal despendes,

Depois, se te arrependes,

O tempo, como corre a redea solta,
Não torna mais a dar volta,

Nem nosso estado humano he tão felice,
Que se renove assim como a Fenice.

Como posso esperar de ti piedade,
Se tu, com teu intento deshumano,
Comtigo mesmo usando estás crueza;
Claro está, de meu mal o desengano:
Quem não tem para si liberdade
Mal poderá para outrem ter larguezà.
Mas comtudo, essa roda de aspereza
Espero que desande,

E alguma ora abrande;

Porque, por tempo as feras das montanhas

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