LXXIV
Aquella fera humana que enriquece A sua presunçosa tyrannia
Destas minhas entranhas, onde cria Amor hum mal, que falta quando crece; Se nella o Ceo mostrou (como parece)
Quanto mostrar ao mundo pretendia, Porque de minha vida se injuría? Porque de minha morte se ennobrece?
Ora, em fim, sublimai vossa victoria,
Senhora, com vencer-me e captivar-me: Fazei della no mundo larga historia.
Pois, por mais que vos veja atormentar-me, Ja me fico logrando desta gloria. De vêr que tendes tanta de matar-me.
LXXV
Ditoso seja aquelle que sómente
Se queixa de amorosas esquivanças; Pois por ellas não perde as esperanças De poder n'algum tempo ser contente.
Ditoso seja quem estando ausente
Não sente mais que a pena das lembranças; Porqu'inda que se tema de mudanças, Menos se teme a dôr quando se sente. Ditoso seja, em fim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção Trazem hum coração atormentado. Mas triste quem se sente magoado
De erros em que não póde haver perdão Sem ficar na alma a mágoa do peccado.
Quem fosse acompanhando juntamente Por esses verdes campos a avezinha, Que despois de perder hum bem que tinha, Não sabe mais que cousa he ser contente! fosse apartando-se da gente,
quem
Ella por companheira e por vizinha, Me ajudasse a chorar a pena minha, E eu a ella tambem a que ella sente! Ditosa ave! que ao menos, se a natura
A seu primeiro bem não dá segundo, Dá-lhe o ser triste a seu contentamento. ̧
Mas triste quem de longe quiz ventura Que para respirar lhe falte o vento, para tudo, em fim, lhe falte o mundo!
E
LXXVII
O culto divinal se celebrava
No templo donde toda criatura
Louva o Feitor divino, que a feitura Com seu sagrado sangue restaurava. Amor alli, que o tempo me aguardava Onde a vontade tinha mais segura, Com huma rara e angelica figura A vista da razão me salteava.
Eu crendo que o lugar me defendia De seu livre costume, não sabendo Que nenhum confiado lhe fugia, Deixei-me captivar: mas hoje vendo,
Senhora, que por vosso me queria, Do tempo que fui livre me arrependo.
LXXVIII
Leda serenidade deleitosa,
Que representa em terra hum paraiso; Entre rubís e perlas doce riso, Debaixo de ouro e neve cor de rosa;
Presença moderada e graciosa,
Onde ensinando estão despejo e siso Que se póde por arte e por aviso, Como por natureza, ser formosa; Falla de que ou ja vida, ou morte pende, Rara e suave, em fim, Senhora, vossa, Repouso na alegria comedido;
Estas as armas são com que me rende E me captiva Amor; mas não que possa Despojar-me da gloria de rendido.
LXXIX
Bem sei, Amor, que he certo o que receio; Mas tu, porque com isso mais te apuras, De manhoso mo negas, e mo juras Nesse teu arco de ouro; e eu te creio.
A mão tenho metida no meu seio,
E não vejo os meus damnos ás escuras: Porém porfias tanto e me asseguras, Que me digo que minto, e que me enleio. Nem sómente consinto neste engano,
Mas inda to agradeço, e a mi me nego Tudo o que vejo e sinto de meu dano.
Oh poderoso mal a que me entrego! Que no meio do justo desengano Me possa inda cegar hum moço cego?
Como quando do mar tempestuoso O marinheiro todo trabalhado, De hum naufragio cruel sahindo a nado, Só de ouvir fallar nelle está medroso:
Firme jura que o vê-lo bonançoso
Do seu lar o não tire socegado; Mas esquecido ja do horror passado, Delle a fiar se torna cobiçoso: Assi, Senhora, eu que da tormenta
De vossa vista fujo, por salvar-me, Jurando de não mais em outra vêr-me;
Com a alma que de vós nunca se ausenta, Me tórno, por cobiça de ganhar-me, Onde estive tão perto de perder-me.
LXXXI
Amor he hum fogo que arde sem se ver; He ferida que doe e não se sente; He hum contentamento descontente; He dôr que desatina sem doer; He hum não querer mais que bem querer; He solitario andar por entre a gente; He hum não contentar-se de contente; He cuidar que se ganha em se perder; He hum estar-se prêso por vontade; He servir a quem vence o vencedor; He hum ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar póde o seu favor
Nos mortaes corações conformidade, Sendo a si tão contrário o mesmo Amor?
LXXXII
Se
pena por amar-vos se merece, Quem della estará livre? quem isento? E que alma, que razão, que entendimento No instante em que vos vê não obedece?
Qual mór gloria na vida ja se offrece,
Que a de occupar-se em vós o pensamento? Não só todo rigor, todo tormento
Como vêr-vos não magoa, mas se esquece. Porém se heis de matar a quem amando,
Ser vosso de amor tanto só pretende, O mundo matareis, que todo he vosso. Em mi podeis, Senhora, ir começando,
Pois bem claro se mostra e bem se entende Amar-vos quanto devo e quanto posso.
LXXXIII
Que levas, cruel Morte? Hum claro dia. A que horas o tomaste? Amanhecendo. E entendes o que levas? Não o entendo. Pois quem to faz levar? Quem o entendia. Seu corpo quem o goza? A terra fria.
Como ficou sua luz? Anoitecendo. Lusitania que diz? Fica dizendo... Que diz? Não mereci a gra Maria. Mataste a quem a vio? Ja morto estava. Que discorre o Amor? Fallar não ousa. E quem o faz callar? Minha vontade.
Na Côrte que ficou? Saudade brava.
Que fica lá que vêr? Nenhuma cousa. Que gloria lhe faltou? Esta beldade.
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