Aquella fera humana que enriquece A sua presunçosa tyrannia
Destas minhas entranhas, onde cria. Amor hum mal, que falta quando crece; Se nella o Ceo mostrou (como parece) Quanto mostrar ao mundo pretendia, Porque de minha vida se injuria? Porque de minha morte se ennobrece? Ora, em fim, sublimai vossa victoria, Senhora, com vencer-me e captivar-me: Fazei della no mundo larga historia.
Pois, por mais que vos veja atormentar-me,
Ja me fico logrando desta gloria
De ver que tendes tanta de matar-me.
Ditoso seja aquelle que sómente
Se queixa de amorosas esquivanças; Pois por ellas não perde as esperanças De poder n'algum tempo ser contente. Ditoso seja quem estando ausente
Não sente mais que a pena das lembranças; Porqu'inda que se tema de mudanças, Menos se teme a dôr quando se sente.
Ditoso seja, em fim, qualquer estado, Onde enganos, desprezos e isenção Trazem hum coração atormentado.
Mas triste quem se sente magoado De erros em que não póde haver perdão Sem ficar na alma a mágoa do peccado.
Quem fosse acompanhando juntamente Por esses verdes campos a avezinha, Que despois de perder hum bem que Não sabe mais que cousa he ser contente! fosse apartando-se da gente, Ella por companheira e por vizinha, Me ajudasse a chorar a pena minha, E eu a ella tambem a que ella sente! Ditosa ave! que ao menos, se a natura
A seu primeiro bem não dá segundo, Dá-lhe o ser triste a seu contentamento.. Mas triste quem de longe quiz ventura Que para respirar lhe falte o vento,
para tudo, em fim, lhe falte o mundo!
O culto divinal se celebrava
No templo donde toda criatura Louva o Feitor divino, que a feitura Com seu sagrado sangue restaurava.
Amor alli, que o tempo me aguardava Onde a vontade tinha mais segura, Com huma rara e angelica figura A vista da razão me salteava.
Eu crendo que o lugar me defendia
De seu livre costume, não sabendo Que nenhum confiado lhe fugia, Deixei-me captivar: mas hoje vendo,
Senhora, que por vosso me queria, Do tempo que fui livre me arrependo.
Leda serenidade deleitosa,
Que representa em terra hum paraiso; Entre rubís e perlas doce riso, Debaixo de ouro e neve côr de rosa;
Presença moderada e graciosa,
Onde ensinando estão despejo e siso Que se póde por arte e por aviso, Como por natureza, ser formosa;
Falla de que ou ja vida, ou morte pende, Rara e suave, em fim, Senhora, vossa, Repouso na alegria comedido;
Estas as armas são com que me rende E me captiva Amor; mas não que possa Despojar-me da gloria de rendido.
Bem sei, Amor, que he certo o que receio; Mas tu, porque com isso mais te apuras, De manhoso mo negas, e mo juras Nesse teu arco de ouro; e eu te creio.
A mão tenho metida no meu seio,
E não vejo os meus damnos ás escuras: Porém porfias tanto e me asseguras, Que me digo que minto, e que me enleio. Nem sómente consinto neste engano,
Mas inda to agradeço, e a mi me nego Tudo o que vejo e sinto de meu dano. Oh poderoso mal a que me entrego! Que no meio do justo desengano Me possa inda cegar hum moço cego?
Como quando do mar tempestuoso O marinheiro todo trabalhado,
De hum naufragio cruel sahindo a nado, Só de ouvir fallar nelle está medroso:
Firme jura que o vê-lo bonançoso Do seu lar o não tire socegado; Mas esquecido ja do horror passado, Delle a fiar se torna cobiçoso: Assi, Senhora, eu que da tormenta
De vossa vista fujo, por salvar-me, Jurando de não mais em outra vêr-me;
Com a alma que de vós nunca se ausenta, Me tórno, por cobiça de ganhar-me, Onde estive tão perto de perder-me.
Amor he hum fogo que arde sem se ver; He ferida que doe e não se sente; He hum contentamento descontente; He dôr que desatina sem doer;
He hum não querer mais que bem querer; He solitario andar por entre a gente; He hum não contentar-se de contente: He cuidar que se ganha em se perder; He hum estar-se prêso por vontade; He servir a quem vence o vencedor; He hum ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar póde o seu favor
Nos mortaes corações conformidade, Sendo a si tão contrário o mesmo Amor?
pena por amar-vos se merece,
Quem della estará livre? quem isento?
que alma, que razão, que entendimento No instante em que vos vê não obedece?
Qual mór gloria na vida ja se offrece,
Que a de occupar-se em vós o pensamento? Não só todo rigor, todo tormento
Como vêr-vos não magoa, mas se esquece. Porém se heis de matar a quem amando, Ser vosso de amor tanto só pretende, O mundo matareis, que todo he vosso. Em mi podeis, Senhora, ir começando, Pois bem claro se mostra e bem se entende Amar-vos quanto devo e quanto posso.
Que levas, cruel Morte? Hum claro dia. que horas o tomaste? Amanhecendo. E entendes o que levas? Não o entendo. Pois quem to faz levar? Quem o entendia. Seu corpo quem o goza? A terra fria. Como ficou sua luz? Anoitecendo. Lusitania que diz? Fica dizendo... Que diz? Não mereci a grã Maria.
Mataste a quem a vio? Ja morto estava. Que discorre o Amor? Fallar não ousa.
E quem o faz callar? Minha vontade. Na Côrte que ficou? Saudade brava. Que fica lá que vêr? Nenhuma cousa. Que gloria lhe faltou? Esta beldade.
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