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XCIV

Se tomo a minha pena em penitencia
Do error em que cahio o pensamento,
Não abrando, mas dóbro meu tormento,
Que a tanto, e mais, obriga a paciencia.
E se huma côr de morto na apparencia,
Hum espalhar suspiros vãos ao vento
Não faz em vós, Senhora, movimento,
Fique o meu mal em vossa consciencia.

Mas se de qualquer áspera mudança

Toda vontade isenta Amor castiga,
(Como eu vejo no mal que me condena)

E se em vós não se entende haver vingança,
Será forçado (pois Amor me obriga)
Que eu só da culpa vossa pague a pena.

XCV

Aquella que, de pura castidade,

De si mesma tomou cruel vingança
Por huma breve e subita mudança
Contrária á sua honra e qualidade;
Venceo á formosura a honestidade,,

Venceo no fim da vida a esperança,
Porque ficasse viva tal lembrança,
Tal amor, tanta fé, tanta verdade.

De si, da gente e do mundo esquecida, Ferio com duro ferro o brando peito, Banhando em sangue a força do tyrano.

Oh ousadia estranha! estranho feito!
Que dando breve morte ao corpo humano,
Tenha sua memoria larga vida!

XCVI

Os vestidos Elisa revolvia,

Que Eneas lhe deixára por memoria;
Doces despojos da passada gloria;
Doces quando seu fado o consentia.
Entre elles a formosa espada via,

Que instrumento, em fim, foi da triste historia;
E como quem de si tinha a victoria,
Fallando só com ella, assi dizia:

Formosa e nova espada, se ficaste

Só porque executasses os enganos
De quem te quiz deixar, em minha vida;

Sabe

que tu comigo te enganaste; Que para me tirar de tantos danos Sobeja-me a tristeza da partida.

XCVII

Oh quão caro me custa o entender-te,
Molesto Amor que, só por alcançar-te,
De dôr em dôr me tens trazido a parte
Donde em ti odio e ira se converte!
Cuidei que para em tudo conhecer-te

Me não faltava experiencia e arte;
Mas na alma vejo agora accrescentar-te
Aquillo que era causa de perder-te.
Estavas tão secreto no meu peito,

Que eu mesmo, que te tinha, não sabía
Que me senhoreavas deste geito.

Descubriste-te agora; e foi por via

Que teu 'descobrimento e meu defeito,
Hum me envergonha e outro me injuría.

XCVIII

Se despois de esperança tão perdida,

Amor por causa alguma consentisse Que inda algum' hora breve alegre visse De quantas tristes vio tão longa vida; Hum'alma ja tão fraca e tão cahida

(Quando a sorte mais alto me subisse)
Não tenho para mi que
consentisse
Alegria tão tarde consentida.

Nem tamsómente o Amor me não mostrou
Hum'hora em que vivesse alegremente,
De quantas nesta vida me negou;
Mas inda tanta pena me consente,

Que co'o contentamento me tirou
O gôsto de algum'hora ser contente.

XCIX

O raio crystallino se estendia

Por o mundo, da Aurora marchetada,
Quando Nise, pastora delicada,
Donde a vida deixava se partia.
Dos olhos, com que o sol escurecia,

Levando a luz em lagrimas banhada,
De si, do fado, e tempo magoada,
· Pondo os olhos no Ceo, assi dizia:
Nasce, sereno sol, puro e luzente;

Resplandece, purpurea e branca aurora,
Qualquer alma alegrando descontente;
Que a minha, sabe tu que desde agora
Jamais na vida á podes ver contente,

Nem tão triste nenhuma outra pastora.

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C

No mundo poucos annos e cansados
Vivi, cheios de vil miseria e dura:
Foi-me tão cedo a luz do dia escura,
Que não vi cinco lustros acabados.
Corri terras e mares apartados,

Buscando á vida algum remedio ou cura:
Mas aquillo que, em fim, não dá ventura
Não o dão os trabalhos arriscados.

Criou-me Portugal na verde e chara

Patria minha Alemquer; mas ar corruto,
Que neste meu terreno vaso tinha,

Me fez manjar de peixes em ti, bruto
Mar, que bates a Abássia fera e avara,
Tão longe da ditosa patria minha.

CI

Vós, que escutais em Rimas derramado
Dos suspiros o som que me alentava
Na juvenil idade, quando andava
Em outro em parte do que sou mudado;

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Sabei que busca só do ja cantado

No tempo em que ou temia ou esperava,
De
quem o mal

provou, que eu tanto amava, Piedade, e não perdão, o meu cuidado.

Pois vejo que tamanho sentimento

Só me rendeo ser fábula da gente,
(Do que comigo mesmo me envergonho)

Sirva de exemplo claro meu tormento,

Com que todos conheção claramente
Que quanto ao mundo apraz he breve sonho.

CII

De amor escrevo, de amor trato e vivo;
De amor me nasce amar sem ser amado;
De tudo se descuida o meu cuidado,
Quanto não seja ser de amor captivo:

De amor que a lugar alto voe altivo,

E funde a gloria sua em ser ousado;
Que se veja melhor purificado

No immenso resplandor de hum raio esquivo.

Mas ai que tanto amor só pena alcança!

Mais constante ella, e elle mais constante, De seu triumpho cada qual só trata. Nada, emfim, me aproveita; que a esperança, Se anima alguma vez a hum triste amante, Ao perto vivifica, ao longe mata.

CIII

Se da célebre Laura a formosura

Hum numeroso cysne ufano escreve,
Huma angelica penna se te deve,
Pois o Ceo em formar-te mais se apura.

E se voz menos alta te procura

Celebrar, (oh Natercia!) em vão se atreve:
De vêr-te ja a ventura Liso teve,
Mas de cantar-te falta-lhe a ventura.

No Ceo nasceste, certo, e não na terra:
Para gloria do mundo cá desceste:
Quem mais isto negar, muito mais erra.
E eu imagino que de lá vieste

Para emendar os vicios que elle encerra,
Co'os divinos poderes que trouxeste.

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