Que modo tão subtil da natureza Para fugir ao mundo e seus enganos! Permitte que se esconda em tenros annos Debaixo de hum burel tanta belleza!
Mas não pode esconder-se aquella alteza E gravidade de olhos soberanos, A cujo resplandor entre os humanos Resistencia não sinto, ou fortaleza. Quem quer livre ficar de dôr e pena, Vendo-a ja, ja trazendo-a na memoria, Na mesma razão sua se condena. Porque quem mereceo vêr tanta gloria Captivo ha de ficar; que Amor ordena Que de juro tenha ella esta victoria.
Quando se vir com água o fogo arder, Juntar-se ao claro dia a noite escura, E a terra collocada lá na altura. Em que se vem os ceos prevalecer; Quando Amor á Razão obedecer,
E em todos for igual huma ventura, Deixarei eu de vêr tal formosura, E de a amar deixarei depois de a ver. Porém não sendo vista esta mudança
No mundo, porque, em fim, não póde ver-se, Ninguem mudar-me queira de querer-vos.
Que basta estar em vós minha esperança, E o ganhar-se a minha alma, ou o perder-se, Para dos olhos meus nunca perder-vos.
Quando a suprema dôr muito me aperta, Se digo que desejo esquecimento, He força que se faz ao pensamento, De que a vontade livre desconcerta. Assi de êrro tão grave me desperta A luz do bem regido entendimento, Que mostra ser engano, ou fingimento, Dizer que em tal descanso mais se acerta. Porque essa propria imagem, que na mente Me representa o bem de que careço, Faz-mo de hum certo modo ser presente. Ditosa he, logo, a pena que padeço,
Pois que da causa della em mi se sente Hum bem que, inda sem vêr-vos, reconheço.
margem de hum ribeiro, que fendia Com liquido crystal hum verde prado,
O triste pastor Liso debruçado
Sobre o tronco de hum freixo assi dizia:
Ah Natercia cruel! quem te desvia
Esse cuidado teu do meu cuidado? Se tanto hei de penar desenganado, Enganado de ti viver queria.
Que foi de aquella fé que tu me déste ? D'aquelle puro amor que me mostraste? Quem tudo trocar pôde tão asinha?
Quando esses olhos teus n'outro puzeste, Como te não lembrou que me juraste Por toda a sua luz que eras só minha?
Se me vem tanta gloria só de olhar-te, He pena desigual deixar de ver-te; Se presumo com obras merecer-te, Grão paga de um engano he desejar-te. Se aspiro por quem és a celebrar-te,
Sei certo por quem sou que hei de offender-te; Se mal me quero a mi por bem querer-te, Que premio querer posso mais que amar-te? Porque hum tão raro amor não me soccorre? Oh humano thesouro! oh doce gloria! Ditoso quem á morte por ti corre!
Sempre escrita estarás nesta memoria; E esta alma viverá, pois por ti
Porque ao fim da batalha he a victoria.
Sempre a Razão vencida foi de Amor; Mas, porque assi o pedia o coração, Quiz Amor ser vencido da Razão. Ora que caso póde haver maior!
Novo modo de morte, e nova dor! Estranheza de grande admiração! Pois, em fim, seu vigor perde a affeição, Porque não perca a pena o seu vigor. Fraqueza, nunca a houve no querer;
Mas antes muito mais se esforça assim Hum contrário com outro por vencer. Mas a razão que a luta vence, em fim,
Não creio que he razão; mas deve ser Inclinação que eu tenho contra mim.
Coitado! que em hum tempo chóro e rio; Espero e temo, quero e aborreço; Juntamente me allegro e me entristeco; Confio de huma cousa e desconfio.
Vôo sem azas; estou cegò e guio; Alcanço menos no que mais mereço; Então fallo melhor, quando emmudeço; Sem ter contradição sempre porfio. Possivel se me faz todo o impossivel; Intento com mudar-me estar-me quedo; Usar de liberdade, e ser captivo;
Queria visto ser, ser invisivel;
Vêr-me desenredado, amando o enredo: Taes os extremos são com que hoje vivo!
Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me, tão entregue a meu cuidado, Andar sempre dos homens apartado, E de humanos commercios esquecido. Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quasi que sobre elle ando dobrado, Tenho por baixo, rustico, e enganado Quem não he com meu mal engrandecido.
Vá revolvendo a terra, o mar, e o vento, Honras busque e riquezas a outra gente, Vencendo ferro, fogo, frio e calma.
Que eu por amor sómente me contento De trazer esculpido eternamente Vosso formoso gesto dentro da alma.·
Olhos, aonde o Ceo com luz mais pura Quiz dar de seu poder claros signais, Se quizerdes vêr bem quanto possais, Vêde-me a mi que sou vossa feitura. Em mi viva vereis vossa figura
Mais propria que em purissimos crystais, Porque nesta alma he certo que vejais Melhor que em hum crystal tal formosura.
De meu não quero mais que o meu desejo, Se acaso por querer-vos mais mereço, Porque o vosso poder em mi se asselle. Do mundo outra memoria em mi não vejo: Com lembrar-me de vós, delle me esqueço, Com triumphardes de mi, triumpharei delle.
Criou a natureza Damas bellas,
Que forão de altos plectros celebradas; Dellas tomou as partes mais prezadas, E a vós, Senhora, fez do melhor dellas.
Ellas diante vós são as estrellas,
Que ficão com vos vêr logo eclipsadas. Mas se ellas tee por sol essas rosadas Luzes de sol maior, felices ellas!
Em perfeição, em graça e gentileza,
Por hum modo entre humanos peregrino, A todo bello excede essa belleza.
quem tivera partes de divino
Para vos merecer! Mas se pureza
De amor val ante vós, de vós sou dino.
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