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lha, que tendo algumas vezes espreitado por uma fenda do altar, que estava junto á grade do choro debaixo, lhe parecêra ter ali visto uma lapida sepulchral.

Tirado o altar, achou-se com effeito uma sepultura, que não podia ser senão a do Poeta, pois ainda conservava a Inscripcão, que lhe mandára pôr D. Gonçalo Coutinho, e os versos latinos, que andam impressos nas suas Obras porém a lapida estava toda quebrada, e fendida, sem dúvida com a queda das abobadas na occasião do terremoto. Para abrir a sepultura foi a lapida tirada a pedaços, e para a tapar substituida por outra; mas aqui mesmo se mostra a pouca attenção que entre nós se dá a estes objectos, pois nem a nova campa se fez igual á primeira, nem ao menos se lembrou ninguem de gravar na nova alguma Inscripção, que informasse a posteridade do motivo porque ali faltava o Epitaphio.

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Parece-me pois, que esta explicação, que eu ouvi muitas vezes a José Agostinho, sempre sem variedade, deve tirar todas as dúvidas, de que a sepultura, que existe na Igreja de Santa Anna junto á grade do choro debaixo, que antigamente correspondia ao meio do Templo, encerra os ossos do Cantor da gloria da Patria, do Principe dos Poetas Portuguezes.

CAPITULO IV.

Algumas observações sobre a vida de
Luis de Camões.

Tudo, que diz respeito á pessoa, e successos deste

Poeta, se apresenta enredado em contradicções, e dúvidas. Dúvidas sobre o anno do seu nascimento; dúvidas sobre a terra, que lhe deu o berço; dúvidas sobre a epocha da sua morte, e sobre o logar, em que ella se verificou, dúvidas sobre a causa das perseguições, que soffreu tanto na Europa eomo na Asia, e do abandono, em que ficaram os seus serviços. Nem podia deixar de ser assim, pois que a maior parte do que delle nos referem os seus Biographos, quasi que não tem mais fundamento, que a noticia que o Chantre de Evora Manoel Severim de Faria nos deixou da sua vida, guiando-se por conjecturas, que fez sobre o exame das suas obras.

Este modo de escrever a vida de um Poeta pelas induções, que podem tirar-se de alguns trechos dos seus Poemas, póde sim provar grande sagacidade, e engenho em quem se dá a este exame, porém tenho-o por sobremaneira fallivel, tão fallivel como querer ajuizar por suas obras do seu caracter, opiniões, e sentimentos.

Além de ser mui raro que se imprimam todas as obras de um Poeta, e de ser mui probavel, que as que chegam ao conhecimento do público sejam as menos aptas para essas investigações, é tambem certo, que os Poetas sam muitas vezes obrigados a escrever versos em nome de outras pessoas, e já se vê quanto é facil, que se lhe attribuam cousas, que tem referencia a individuos, e circumstancias mui diversas, resultando daqui factos contradictorios, inconciliaveis, e a confusão, e o erro em logar da verdade.

É opinião geralmente recebida, que as desgraças, c perseguições do nosso Poeta nasceram dos seus amores com D. Catharina de Ataide, Dama do Paço, da casa do Conde da Castanheira D. Luiz de Ataide, grande valido d'El-Rei D. João III., mas deviam provar primeiro, que essa Dama existíra realmente, o que me parece um pouco difficil.

Todo o fundamento desta opinião me parece assentar, em que entre as poesias do Poeta existem algumas dirigi- das a Natercia, anagrama de Catharina; mas sendo innegavel, que em Lisboa havia nesse tempo pelo menos tantas Senhoras desse nome, como é probavel que existam hoje, quem póde sem temeridade affirmar a qual dellas o Poeta dirigia os seus obsequios, quando elle em nenhuma parte de suas obras diz cousa, que indique a sua qualidade, e pozição na Sociedade? E prova-se tanto, que nisto não ha mais que conjecturas, que Manoel de Faria e Sousa em uma das suas vidas do Poeta affirma, que D. Catharina era uma Senhora de Coimbra; e João Pinto Ribeiro, que uma Prima de Luiz de Camões! D. José Maria de Sousa diz, que recorrêra as Memorias da Casa Real, para conhecer a que ramo da familia de Castanheira pertencia D. Catharina, e que perdêra o seu trabalho.

Si o Morgado de Matheus se vio obrigado a recorrer áquelle livro, é porque entre os parentes daquella nobre casa não achou noticias do que procurava; ora sendo os fidalgos os mais profundos e minuciosos Genealogicos, poderá alguem capacitar-se de que em uma das casas mais principaes do reino houvesse uma Senhora, de que os membros dessa familia não tenham noticia? Que houvesse uma Dama no Paço, de que as Memorias da Casa Real não façam menção, tambem me parece uma suppozição improbavel; no entanto o nobre Morgado, seguindo a torrente da opinião dos Biographos, diz que se persuade que sería parenta do Conde, mas essa opinião tão duvidosamente enunciada me parece não ser bastante para elucidar, ou dicidir a questão.

Alguns citam como prova destes amores, e da existencia desta Dama o seguinte

SONETO.

O culto divinal se celebrava
No Templo donde toda a creatura
Louva o Feitor divino, que a Feitura
Com seu sagrado sangue restaurava.

Amor ali, que a tempo me aguardava,
Onde a vontade tinha mais segura,
Com huma rara, e angelica figura
A vista da razão me salteava.

Eu crendo que o logar me defendia,
De seu livre costume,não sabendo,
Que nenhum comfiado lhe fugia

Deixei-me captivar, mas hoje vendo,
Senhora, que por vosso me queria,

Do tempo, que fui livre me arrependo.

Este Soneto o mais que póde provar é, que o Poeta se namurou de certa Dama, que viu pela semana santa em uma igreja de Lisboa, que os seus Biographos querem que fosse a ermida das Chagas, não a actual, mas outra que então existia junto ao Convento dos Trinos, de que era annexa, e que depois por desavenças entre os Frades, e os Irmãos, se transferio para o sitio do Pico, onde hoje existe, isto em virtude de Bullas Pontificias, que correm impressas, e cujos originaes se conservam no cartorio da dita Ermida. Mas póde alguem affirmar, que aquella Dama fosse D. Catharina de Ataide, a Natercia do Poeta? Não vêjo nelle cousa que o faça suspeitar, e com toda a franqueza digo, que tenho este successo por fabuloso, e Natercia por um ente de razão.

Todos sabem que Francisco Petrarcha, um dos homens mais benemeritos das letras, e da Poesia no seculo quatorze nos seus versos Toscanos inventou um novo modo de cantar d'amores, que nem Gregos, nem Romanos ha~ viam conhecido.

Consistia este novo estylo em uma especie de metha

physica amorosa, modelada pelas idéas de Platão, em que o amor se affastava dos sentidos, e da esperança, espiritualisando-se a ponto de tornar-se um culto ascetico da belleza, em que a phantasia brilhava, e o coração ficava mudo era uma poesia, que, semilhante ao gêlo ferido do Sol, brilhava mas não aquecia, deslumbrava com imagens agradaveis, mas não arrebatava com a vehemencia de um affecto ardente, e impetuoso. Tudo eram visões, raptos, contemplações, deliquios de amor, lagrimas, suspiros, que fallavam, suspiros, que respondiam, cabellos de ouro, olhos que eram astros, rosas colhidas no paraiso, agoas doces, regatos despenhados de rochedos, auras, verdura florida, finalmente um verdadeiro curso de philosophia amorosa, escripto em optimos versos, e em linguagem purissima, e elegante.

Com estas miniaturas poeticas, sem claro-escuro como as pinturas Chinezas, celebrou Petrarcha uma certa Madama Laura, que elle fez acreditar ao mundo, que se nutria destes incensos, como elle se contentava de a vêr, adorar, e dizer-lhe que a amava; sem que dessa idolatria proviesse a menor mancha á sua honestidade, e fidelidade conjugal. Alguns Criticos modernos, parecendo-lhe que o estylo de Petrarcha era demasiado artificioso, e estudado para ser a expressão de sentimentos verdadeiros, e desconfiando de que tal desinteresse de affectos podesse dar-se em um Clerigo tão pouco modesto, que deixára de diversas mulheres um grande número de filhos naturaes, deram-se a examinar o negocio com toda a attenção, e sagacidade, propria da sciencia critica dos nossos tempos, e tiraram em resultado das suas investigações, que a Laura de Petrarcha só existíra na sua imaginação, como thema da sua nova poesia.

Mas mesmo porque esta poesia era nova, e superior a quanto no genero lyrico havia apparecido naquelle seculo barbaro, foi tambem da moda, e Petrarcha se viu á testa de uma Eschola Poetica, composta de todos aquelles, que não tendo sufficientes forças para seguir os vôos assombrosos, de Dante, se dirigiam ao Pindo por um caminho menos aspero, copiando a maneira, o estylo, as invenções do mestre, de modo que as suas obras segundo a expressão do judicioso Betinelli, se fossem colligidas

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