A QUEM LER Eu fui encarregado pelo governo, em 30 de maio de 1860, de colligir os documentos indispensaveis para se coordenar a historia literaria da Universidade, dando outro governo por finda a commissão em 30 de maio 2 de 1862. Eu nunca reclamei contra este ultimo despacho. Justiça ou injustiça, era para mim um favor, como attesta o officio, que em seguida transcrevo. Ill.mo e ex.mo sr. -No desempenho da importante commissão, que me foi incumbida pela portaria de 30 de maio do anno proximo passado, tenho visitado os differentes archivos academicos, especialmente o cartorio da extincta juncta de fazenda da Universidade, onde se encontram os mais notaveis, e preciosos documentos para a historia literaria do nosso primeiro estabelecimento scientifico. Desde o primeiro dia em que frequentei este cartorio, entendi logo que era do meu rigoroso dever informar o governo de sua 1 Pag. 144 da Legislação academica, colligida pelo conselheiro doutor José Maria de Abreu. Coimbra; Imprensa da Universidade, 1863. 2 Pag. 274 da mesma. VIII magestade do estado deploravel de abandono em que se encontrava aquella repartição, abundante e rico thesouro de monumentos rarissimos; e que me cumpria indicar as medidas que julgasse indispensaveis para obstar á sua total ruína: mas tendo occasião de falar detidamente a este respeito com o excellentissimo reitor da Universidade, soube que as minhas observações haviam sido por elle prevenidas, e que varias vezes lembrára ao governo de sua magestade a urgente necessidade da separação do que deve pertencer ao archivo literario deste grandioso estabelecimento, e do que pode aproveitar aos interesses da fazenda nacional. Porque a voz auctorisada do digno prelado seria certamente ouvida de preferencia á minha, impuz-me religioso silencio, e aguardei as determinações de sua magestade, não sem me pungir o sentimento, que estou persuadido experimentará todo o portuguez, que presar as glorias da sua patria, quando ao entrar os humbraes daquelle archivo, observar o pouco ou nenhum caso que dellas temos feito. Apenas encetei os meus trabalhos, conheci as grandes difficuldades com que tinha de luctar. Debalde procurei no indice informe, que ha na repartição, um guia para me dirigir nas indagações que necessitava fazer; de nada me poude servir, no estado de collocação e desarranjo em que se encontram tantos e tão valiosos documentos, uns dispersos pelos pavimentos das salas, outros sobrepostos nas divisões das estantes, estes dobrados em maços, e mettidos em gavetas, ou amontoados pelos angulos das casas, aquelles dispostos em armarios, e em pessimo estado de conservação. E todos desordenados sem classificação geographica, ou chronologica, confundidos e misturados, e subjeitos a extravíos, porque nem relacionados estão. Muitos ha inteiramente inutilisados; com especialidade os pergaminhos, que nas dobras se acham carcomidos. Alguns rôtos, e consumidos pelo tempo, apresentam só fragmentos inintellegiveis. Causa lastima ver aquelle importante, e rico thesouro attestando unicamente o nosso vergonhoso desleixo. De tudo que existe na repartição, apenas se conserva em bom recato a doação regia de 4 de julho de 1774; o resto, que é dum valor immenso, assim para a historia literaria da Universidade, como para os interesses da fazenda nacional, pode dizer-se completamente perdido, se desde ja se não acudir ao estado de ruína cada vez mais crescente, a que se vae successivamente reduzindo. Não é possivel que por mais tempo subsista a incuria com que tem sido tractado um dos mais ricos archivos do paiz. Ao illustrado governo de sua magestade não podem deixar de ser manifestos os graves inconvenientes, que resultam da continuação deste deploravel abandono; e como protector zeloso das letras, é a elle que cumpre dar as providencias acertadas para atalhar tão grande mal. Neste archivo onde se acham tambem reunidos os cartorios de varios collegios de jesuitas, que foram dados á Universidade, e aos hospitaes de Coimbra, ha valiosissimos documentos cuja conservação muito importa. Destes uns são relativos aos privilegios, regalías da Universidade, usos e costumes della em differentes epochas, outros versam sobre a naturesa e origem dos bens pertencentes ao priorado-mór, hoje padroado, e suas egrejas; ha alguns que dizem respeito á administração de negocios, e arrecadação das rendas dos jesuitas, avultando muitas bullas, alvarás e cartas regias, dirigidas á Ordem; encontram-se ainda varias memorias, e noticias, ácerca do collegio das Artes, e Universidade de Evora a cargo dos mesmos jesuitas, e de muitos mosteiros, cujos bens e rendimentos, doados a elles, passaram depois á Universidade. Ja se vê portanto, o grande proveito publico, que resultaria da coordenação, e bom arranjo do cartorio da extincta juncta de fazenda da Universidade. Tanto para a historia do paiz, e em especial para a deste importante estabelecimento, que está quasi toda naquelles documentos, como para os interesses da fazenda nacional era convenientissimo, indispensavel, a conservação, e classificação daquelle precioso deposito. X Se a separação de que falo tivesse sido ordenada pelo governo de sua magestade, eu proprio ajudaria o empregado da repartição da fazenda, e ficaria organisado o archivo literario da Universidade. Pela parte que me toca sentiria grande satisfação em prestar ao paiz este serviço, e desde ja offereço a minha boa vontade, para se levar a effeito tão importante reforma. O estado deploravel do cartorio, é facil imaginar-se as difficuldades que me creou, no desempenho da commissão de que fui incumbido. Os meus estudos anteriores, os que tenho feito ha um anno, as informações colhidas na leitura das nossas chronicas, e a compulsão de muitos documentos do mesmo cartorio, forneceram-me o material para escrever a historia literaria da Universidade desde 1537 até 1650. Mas ao passo que progredia no exame do archivo, conheci que tanto os nossos chronistas, como alguns escriptores que perfunctoriamente tractaram do assumpto, e até o douto e infatigavel reitor reformador, Francisco Carneiro de Figueirôa, que muito auxilio me prestára no seu Catalogo dos reitores desde 1537, se tinham enganado em muitos pontos importantes, e continham erradas grande parte das datas que apontavam. Os novos documentos que fui successivamente encontrando, fizeram-me assim por muitas vezes alterar a escriptura; e certamente o apparecimento de outros (pois não poude até agora passar da primeira casa do cartorio) me obrigará ainda a modificar a doutrina dalguns capitulos. Sem um paleógrapho, sem um amanuense, sem uma unica pessoa que me auxiliasse em tão espinhoso trabalho, tenho luctado, e vencido mil difficuldades, qual dellas maior. A prestação mensal de 225500 réis tem sido por mim distribuida, quasi integralmente, a quem me ha copiado os documentos que preciso examinar com mais cuidado. Paleógrapho tenho-o sido eu, roubando assim á escripta da historia o tempo que só devêra consagrar-lhe; e esse fraco arranjo que hoje ha no cartorio, ou antes o conhecimento que tenho ja de parte do que nelle existe, tem-me custado muitas horas de trabalho. Mas encontro agora, além das difficuldades expostas, uma outra não menor devida ao desarranjo dos documentos no archivo. Quando sou obrigado a cital-os, o que é frequentissimo, não posso designar a collocação delles, ja porque nenhuma tem ordenada, ja porque se eu lhe desse alguma, seria ámanhã alterada, quando se procedesse á separação, e saíssem daquella casa os papeis para a repartição da fazenda. vista destas considerações, que submetto á superior illustração de vossa excellencia, ouso lembrar a necessidade urgente de quanto antes se proceder á separação dos documentos e mais papeis que existem naquelle archivo, deixando ficar nelle os subsidios em que tem de fundar-se a historia literaria da Universidade, e passando o resto para o cartorio da fazenda do districto. Eu com o archivista daquella repartição, e um amanuense da secretaria da Universidade, facilmente, e em breve tempo, desempenhariamos aquelle trabalho. E desta fórma pode com decoro do auctor e proveito do paiz, escrever-se a historia literaria da Universidade de Coimbra; que virá a ser uma historia verdadeira, e não uma fabula das Mil e uma noutes. Mas é preciso para isto que se facultem os meios necessarios; e o primeiro é incontestavelmente a separação projectada dos documentos, e o arranjo conveniente daquelle cartorio. Nenhum interesse particular me dirige nas considerações acabadas de expôr. Ja disse que tenho distribuido quasi toda a gratificação que me foi estipulada a quem me copía os documentos que vou encontrando; taes como a collecção dos Estatutos do collegio das Artes desde a sua fundação em 1547, até á entrega delle aos jesuitas em 10 de septembro de 1555, e depois desta epocha até á expulsão da Ordem; diversas memorias contendo as interminaveis questões de ensino entre elles e a Universidade, e varias contendas sobre privilegios, que lhes foram concedidos ás mãos largas naquelles tempos do seu mais absoluto dominio ; os Estatutos de el-rei dom Manuel dados á Universidade de Lis |