Formosa e gentil dama, quando vejo A testa d'ouro e neve, o lindo aspeito, A bocca graciosa, o riso honesto, O collo de crystal, o branco peito,
De meu não quero mais que meu desejo, Nem mais de vós, que vêr tão lindo gesto. Alli me manifesto
Por vosso a Deos e ao mundo; alli m'inflamo Nas lagrimas que chóro;
E de mi, que vos amo,
Em vêr que soube amar-vos me namóro; E fico por mi só perdido de arte, Qu'hei ciumes de mi por vossa parte. Se por ventura vivo descontente Por fraqueza d'esprito, padecendo A doce pena que entender não sei, Fujo de mi, e acolho-me correndo. A' vossa vista; e fico tão contente, Que zombo dos tormentos que passei. De quem me queixarei,
Se vós me dais a vida d'este geito Nos males que padeço,
Senão de meu sogeito,
Que não cabe com bem de tanto preço ? Mas inda isto de mi cuidar não posso, D'estar muito soberbo com ser vosso. Se por algum acêrto Amor vos erra Por parte do desejo, commettendo
Algum nefando e torpe desatino; E s'inda mais que vêr, emfim, pretendo; Fraquezas são do corpo, qu'he de terra, Mas não do pensamento, qu'he divino. Se tão alto imagino
Que de vista me perco, ou pecco n'isto, Desculpa-me o que vejo.
Porém como resisto
Contra um tão atrevido e vão desejo, Faço-me forte em vossa vista pura, Armando-me da vossa formosura.
Das delicadas sobrancelhas pretas Os arcos com que fere Amor tomou, E fez a linda corda dos cabellos: E porque de vós tudo lhe quadrou, Dos raios d'esses olhos fez as settas
Com que fere quem alça os seus a vêl-os.. Olhos que são tão bellos.
Dão armas de vantagem ao Amor,
Com que as almas destrue.
Porém se é grande a dor
Com a alteza do mal a restitue;
E as armas com que a mata são de sorte, Que ainda lhe ficais devendo a morte.
Lagrimas e suspiros, pensamentos, Quem d'elles se queixar, formosa dama, Mimoso está do mal que por vós sente. Qual bem maior deseja quem vos ama, Que estar desabafando seus tormentos,. Chorando, imaginando docemente ? Quem vive descontente
Não ha de dar allívio a seu desgôsto, Porque se lhe agradeça;
Mas com alegre rôsto
Soffra seus males, para que os mereça:
Que quem do mal se queixa, que padece, O faz porqu'esta gloria não conhece.
De modo que se cae o pensamento Em alguma fraqueza, de contente, He porqu'este segredo não conheço. Assi que com razões não tam sómente Desculpo a o Amor de meu tormento, Mas inda a culpa sua lh'agradeço. Por esta fé mereço
A graça que esses olhos acompanha, E o bem do doce riso.
Mas ah! que não se ganha
Com hum paraiso, outro paraiso. E d'enleada assi minha esperança Se satizfaz co'o bem que não alcança.
Se com razões escuso meu remedio, Sabe, Canção, que só porque o não vejo, Engano com palavras o desejo.
A instabilidade da fortuna, Os enganos suaves d'Amor cego, (Suaves, se duraram longamente) Direi, por dar á vida algum socêgo; Que pois a grave pena m'importuna, Importune meu canto a toda gente E se o passado bem co'o mal presente M'endurecer a voz no peito frio; O grande desvario
Dará de minha pena sinal certo; Que um erro em tantos erros é co.
E pois n'esta verdade me confio, (Se verdade se achar no mal que digo) Saiba o mundo d'Amor o desengano, Que já com a razão se fez amigo, Só por não deixar culpa sem castigo.
Já Amor fez leis, sem ter commigo alguma;
Já se tornou de cego razoado,
Só por uzar commigo semrazões.
E se em alguma cousa o tenho errado, Com siso grande dôr não vi nenhuma: Nem elle deu sem erros affeições. Mas, por usar de suas isenções, Buscou fingidas causas de matar-me: Que para derribar-me
A este abysmo infernal de meu tormento, Nunca soberbo foi meu pensamento, Nem pretendeu mais alto levantar-me D'aquillo que elle quiz; e s'elle ordena Qu'eu pague seu ousado atrevimento, Saibam que o mesmo Amor, que me condena, Me fez cahir na culpa e mais na pena. Os olhos, que eu adoro, aquelle dia Que desceram ao baixo pensamento, N'alma os aposentei suavemente ; E pretendendo mais, como avarento, O coração lhe dei por iguaria, Que a meu mandado tinha obediente. Mas, como lhes esteve alli presente, E entenderam o fim do meu desejo, Ou por outro despejo,
Que a lingua descobriu por desvario, Morto de sêde estou posto em um rio, Onde de meu servir o fructo vejo; Mas logo se alça se a colhel-o venho, E foge-me a agua se em beber porfio.
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