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CANÇÃO I

Formosa e gentil dama, quando vejo
A testa d'ouro e neve, o lindo aspeito,
A bocca graciosa, o riso honesto,
O collo de crystal, o branco peito,

De meu não quero mais que meu desejo,
Nem mais de vós, que vêr tão lindo gesto.
Alli me manifesto

Por vosso a Deos e ao mundo; alli m'inflamo Nas lagrimas que chóro;

E de mi, que vos amo,

Em vêr que soube amar-vos me namóro;
E fico por mi só perdido de arte,
Qu'hei ciumes de mi por vossa parte.
Se por ventura vivo descontente
Por fraqueza d'esprito, padecendo
A doce pena que entender não sei,
Fujo de mi, e acolho-me correndo.
A' vossa vista; e fico tão contente,
Que zombo dos tormentos que passei.
De quem me queixarei,

Se vós me dais a vida d'este geito
Nos males que padeço,

Senão de meu sogeito,

Que não cabe com bem de tanto preço ?
Mas inda isto de mi cuidar não posso,
D'estar muito soberbo com ser vosso.
Se por algum acêrto Amor vos erra
Por parte do desejo, commettendo

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Algum nefando e torpe desatino;
E s'inda mais que vêr, emfim, pretendo;
Fraquezas são do corpo, qu'he de terra,
Mas não do pensamento, qu'he divino.
Se tão alto imagino

Que de vista me perco, ou pecco n'isto,
Desculpa-me o que vejo.

Porém como resisto

Contra um tão atrevido e vão desejo,
Faço-me forte em vossa vista pura,
Armando-me da vossa formosura.

Das delicadas sobrancelhas pretas
Os arcos com que fere Amor tomou,
E fez a linda corda dos cabellos:
E porque de vós tudo lhe quadrou,
Dos raios d'esses olhos fez as settas

Com que fere quem alça os seus a vêl-os..
Olhos que são tão bellos.

Dão armas de vantagem ao Amor,

Com que as almas destrue.

Porém se é grande a dor

Com a alteza do mal a restitue;

E as armas com que a mata são de sorte, Que ainda lhe ficais devendo a morte.

Lagrimas e suspiros, pensamentos, Quem d'elles se queixar, formosa dama, Mimoso está do mal que por vós sente. Qual bem maior deseja quem vos ama, Que estar desabafando seus tormentos,. Chorando, imaginando docemente ? Quem vive descontente

Não ha de dar allívio a seu desgôsto,
Porque se lhe agradeça;

Mas com alegre rôsto

Soffra seus males, para que os mereça:

Que quem do mal se queixa, que padece,
O faz porqu'esta gloria não conhece.

De modo que se cae o pensamento
Em alguma fraqueza, de contente,
He porqu'este segredo não conheço.
Assi que com razões não tam sómente
Desculpo a o Amor de meu tormento,
Mas inda a culpa sua lh'agradeço.
Por esta fé mereço

A graça que esses olhos acompanha,
E o bem do doce riso.

Mas ah! que não se ganha

Com hum paraiso, outro paraiso.
E d'enleada assi minha esperança
Se satizfaz co'o bem que não alcança.

Se com razões escuso meu remedio, Sabe, Canção, que só porque o não vejo, Engano com palavras o desejo.

CANÇÃO II

A instabilidade da fortuna,
Os enganos suaves d'Amor cego,
(Suaves, se duraram longamente)
Direi, por dar á vida algum socêgo;
Que pois a grave pena m'importuna,
Importune meu canto a toda gente
E se o passado bem co'o mal presente
M'endurecer a voz no peito frio;
O grande desvario

Dará de minha pena sinal certo;
Que um erro em tantos erros é co.

E pois n'esta verdade me confio,
(Se verdade se achar no mal que digo)
Saiba o mundo d'Amor o desengano,
Que já com a razão se fez amigo,
Só por não deixar culpa sem castigo.

Já Amor fez leis, sem ter commigo alguma;

Já se tornou de cego razoado,

Só por uzar commigo semrazões.

E se em alguma cousa o tenho errado,
Com siso grande dôr não vi nenhuma:
Nem elle deu sem erros affeições.
Mas, por usar de suas isenções,
Buscou fingidas causas de matar-me:
Que para derribar-me

A este abysmo infernal de meu tormento,
Nunca soberbo foi meu pensamento,
Nem pretendeu mais alto levantar-me
D'aquillo que elle quiz; e s'elle ordena
Qu'eu pague seu ousado atrevimento,
Saibam que o mesmo Amor, que me condena,
Me fez cahir na culpa e mais na pena.
Os olhos, que eu adoro, aquelle dia
Que desceram ao baixo pensamento,
N'alma os aposentei suavemente ;
E pretendendo mais, como avarento,
O coração lhe dei por iguaria,
Que a meu mandado tinha obediente.
Mas, como lhes esteve alli presente,
E entenderam o fim do meu desejo,
Ou por outro despejo,

Que a lingua descobriu por desvario,
Morto de sêde estou posto em um rio,
Onde de meu servir o fructo vejo;
Mas logo se alça se a colhel-o venho,
E foge-me a agua se em beber porfio.

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