Não tinha parte donde se deitasse, Nem esperança alguma, onde a cabeça Hum pouco reclinasse, por descanso:
Tudo dor lhe era e causa que padeça, Mas que pereça não; porque passasse O que quiz o destino nunca manso. Oh qu'este irado mar gemendo amanso! Estes ventos, da voz importunados, Parece que se enfreião:
Sómente o Ceo severo,
As estrellas e o fado sempre fero, Com meu perpétuo damno se recreião; Mostrando-se potentes e indignados Contra hum corpo terreno,
Bicho da terra vil e tão pequeno.
Se de tantos trabalhos só tirasse Saber inda por certo que algum' hora Lembrava a huns claros olhos que ja vi; E s'esta triste voz, rompendo fóra, As orelhas angelicas tocasse Daquella em cuja vista ja vivi;
A qual, tornando hum pouco sôbre si, Revolvendo na mente pressurosa Os tempos ja passados
De meus doces errores,
De meus suaves males e furores, Por ella padecidos e buscados, E (pôsto que ja tarde) piedosa, Hum pouco lhe pezasse, E lá entre si por dura se julgasse:
Isto só que soubesse me seria
Descanso para a vida que me fica:
Com isto affagaria o soffrimento.
Ah Senhora! Ah Senhora! E que tão rica Estais, que cá tão longe d'alegria Me sustentais com doce fingimento! Logo que vos figura o pensamento, Foge todo o trabalho e toda a pena. Só com vossas lembranças
Me acho seguro e forte
Contra o rosto feroz da fera morte; E logo se me juntão esperanças
que, a fronte tornada mais serena,
Torno os tormentos graves
Em saudades brandas e suaves.
Aqui com ellas fico perguntando Aos ventos amorosos, que respirão Da parte donde estais, por vós Senhora; Ás aves qu'alli voão, se vos vírão, Que fazieis, qu'estaveis praticando; Onde, como, com quem, que dia e Alli a vida cansada se melhora, Toma espiritos novos, com que vença A fortuna e trabalho,
Só por tornar a vêr-vos,
Só por ir a servir-vos e querer-vos. Diz-me o tempo que a tudo dará talho: Mas o desejo ardente, que detença
Nunca soffreo, sem tento
Me abre as chagas de novo ao soffrimento.
Assi vivo; e s'alguem te perguntasse, Canção, porque não mouro;
Podes-lhe responder; que porque mouro.
Vinde cá meu tão certo Secretario Dos queixumes que sempre ando fazendo, Papel, com quem a pena desaffógo. As semrazões digamos, que vivendo Me faz o inexoravel e contrário Destino, surdo a lagrimas e a rôgo. Lancemos água pouca em muito fogo, Accenda-se com gritos hum tormento, Que a todas as memorias seja estranho. Digamos mal tamanho
A Deos, ao mundo, á gente e, emfim, ao vento, A quem ja muitas vezes o contei,
Tanto debalde como o conto agora. Mas ja que para errores fui nascido, Vir este a ser hum delles não duvido. E, pois ja d'acertar estou tão fóra, Não me culpem tambem se nisto errei. Se quer este refúgio só terei,
Fallar e errar, sem culpa, livremente. Triste quem de tão pouco está contente!
Ja me desenganei que de queixar-me Não s'alcança remedio; mas quem pena, Forçado lh'he gritar, se a dôr he grande. Gritarei; mas he debil e pequena A voz para poder desabafar-me; Porque nem com gritar a dôr se abrande. Quem me dará se quer que fóra mande Lagrimas e suspiros infinitos,
Iguaes ao mal que dentro na alma mora?
Mas quem pôde algum' hora Medir o mal com lagrimas, ou gritos? Direi, emfim, aquillo que m'ensinão A ira, e mágoa, e dellas a lembrança, Que outra dôr he por si mais dura e firme. Chegae, desesperados, para ouvir-me; E fujão os que vivem d'esperança, Ou aquelles que nella se imaginão; Porque Amor e Fortuna determinão De lhes deixar poder para entenderem Á medida dos males que tiverem.
Quando vim da materna sepultura De novo ao mundo, logo me fizerão Estrellas infelices obrigado:
Com ter livre alvedrio, mo não derão; Qu'eu conheci mil vezes na ventura
O melhor, e o peor segui forçado.
para que o tormento conformado
Me dessem com a idade, quando abrisse Inda menino os olhos brandamente, Mandão que diligente
Hum menino sem olhos me ferisse. As lagrimas da infancia ja manavão Com huma saudade namorada; O som dos gritos, que no berço dava, Ja como de suspiros me soava.
Co'a idade e fado estava concertado: Porque quando por acaso m'embalavão, Se d'Amor tristes versos me cantavão, Logo m'adormecia a natureza; Que tão conforme estava co'a tristeza!
Foi minh'ama huma fera; que o destino Não quiz que mulher fosse a que tivesse Tal nome para mi; nem a haveria. Assim criado fui, porque bebesse O veneno amoroso de menino, Que na maior idade beberia,
por costume não me mataria. Logo então vi a image e semelhança Daquella humana fera tão formosa, Suave e venenosa,
Que me criou aos peitos da esperança; De quem eu vi despois o original, Que de todos os grandes desatinos Faz a culpa soberba e soberana. Parece-me que tinha fórma humana, Mas scintilava espiritos divinos. Hum meneio, e presença tinha tal, Que se vangloriava todo o mal
Na vista della: a sombra co'a viveza Excedia o poder da natureza.
Que genero tão novo de tormento Teve Amor, sem que fosse não sómente Provado em mi, mas todo executado? Implacaveis durezas, que ao fervente Desejo, que dá fôrça ao pensamento, Tinhão de seu proposito abalado, E corrido de vêr-se e injuriado: Aqui sombras phantasticas, trazidas D'algumas temerarias esperanças; As bem-aventuranças
Tambem nellas pintadas e fingidas. Mas a dôr do desprêzo recebido,
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