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debaixo da inspecção do padre Thomás José de Aquino; pôde este examinar os manuscriptos de Faria e Sousa, e sobre as poesias já publicadas por aquelle infatigavel commentador, e as que se conservavam ineditas organisou a sua edição, addicionando-a ́ com as cinco eglogas de Bernardes que Faria e Sousa pretende que pertencem a Camões, mais duas, e entre estas uma feita á morte da sua Natercia, e outras poesias, tornando-se com este acrescentamento a edição mais completa até hoje.

Mal pensava eu que depois de tantos annos decorridos poderia extrahir alguma cousa de novo de um terreno trabalhado por tantos cultores e mãos mais habeis, e quando mesmo ninguem pensava na possibilidade de se levar a effeito qualquer tentativa, por se reputarem todos os recursos esgotados. Comtudo algumas flores desparzidas e derramadas, e não poucas que escaparam áquelles que me precederam n'esta laboriosa tarefa, me cabe hoje a ventura de levantar do chão, e com ellas tecer uma nova corôa para lançar sobre a sepultura do grande Poeta portuguez.

O encontro casual de um pequeno manuscripto do seculo XVII que pertenceu a D. Cecilia de Portugal, por ella escripto, e em bellos caracteres, encontrado no decurso das investigações que eu fazia para a biographia de Camões, me despertou a attenção e me fez pensar na possibilidade de se poderem ainda encontrar manuscriptas algumas obras poeticas do Vate portuguez. As oitavas ao desconcerto do mundo que ali vem com variantes, depois de já andarem impressas, e outras poesias, a traducção em castelhano do soneto:

Não vas Nise ao monte com teu gado.

No lleves Joana al rio tu ganado.

Com os mesmos consoantes do de Camões me deu a conhecer que ainda depois de impressas as suas obras se colleccionaram as suas poesias, e assim comecei desde logo a olhar com mais attenção para estas miscellaneas poeticas do seculo xvi e subsequente, e desde então vim no conhecimento que esta não era indifferente, começando a apparecer um resultado satisfactorio, pela descoberta de algumas ineditas. Quando andaya n'estas diligencias na bibliotheca nacional, procurando se existiriam

alguns cancioneiros com que podesse acrescentar o já encontrado, me facilitou para este effeito o Sr. Visconde de Balsemão, n'aquelle tempo bibliothecario mór d'aquella casa, um cancioneiro de que havia feito acquisição para o estabelecimento. Tem por titulo o manuscripto: «Cancioneiro em que vão as obras dos melhores poetas do meu tempo ainda não impressas, e trasladadas de papeis dos mesmos que as composeram, começado na India a 15 de janeiro de 1557 e acabado em Lisboa em 1589 por Luiz Franco Correia, companheiro em o estado da India e muito amigo de Luiz de Camões». E o seu formato um in folio de 296 paginas numeradas de um só lado, e começa com a elegia i que ali é a primeira; a letra é do seculo xvi, porém não o reputo autographo, mas sim uma copia contemporanea, não só porque dizendo-se começado na India e acabado em Lisboa, não encontro differença no papel que muitas vezes era asiatico, mas ainda na tinta, sendo o livro compilado em epochas distinctas e em sitios entre si tão remotos. Acresce a isto que está cheio de notaveis omissões e erros grammaticaes que por vezes transtornam todo o sentido e intelligencia das composições, o que só póde pôr-se a cargo de copista ignorante, e não de Luiz Franco, o qual, alem de poeta, tinha o conhecimento da sua lingua e mesmo das estranhas as quaes manejava. Curiosa é comtudo esta collecção por differentes motivos, porquanto, alem de poesias ineditas e de variantes das impressas, nos offerece uma ordem mais chronologica em algumas das poesias, principalmente nas elegias e nas canções. Comprehende tambem o canto 1 dos Lusiadas com este titulo: «Elusiadas de Luis de Camoens a El-Rei D. Sebastião». Tem algumas variantes, entre as quaes faremos notar esta, porque decifra bastantemente o caracter pouco lisonjeiro de Camões. Na dedicatoria, oitava vi, tinha escripto:

Vós, sagrado Rei, cujo alto imperio.

VIII,

Julgou o epitheto com que incensava o Rei lisonjeiro de mais, e mudou para

Vós, poderoso Rei, cujo alto imperio.

I

No fim do canto 1 dos Lusiadas vem esta declaração: «Não continuo porque se imprimiu». E é pena sem duvida, que não

possuamos toda a copia do poema para conhecermos as emendas e alterações que se fizeram por parte de Camões quando deu á estampa os seus Lusiadas. Algumas vezes, aindaque poucas, foi necessario desviar da orthographia do manuscripto que não é fixa, porquanto repete os mesmos vocabulos por differente fórma, e outros são escriptos por maneira que se afastam do uso, e pareceriam ao leitor erros typographicos como coraçois, dipois, etc.; esta liberdade poucas vezes tomada a não tomariamos, se o manuscripto fosse autographo, ou de epocha mais remota em que fosse necessario conservar as genuinas feições do original. Cumpre tambem fazer uma advertencia, que o manuscripto, trazendo sem indicação as obras mesmo conhecidas de Camões, esta lhe é posta por letra mais moderna, mas por pessoa versada, e que parece ter examinado outros manuscriptos, porquanto fez o mesmo serviço indigitando de quem sejam as obras dos outros auctores que ali se transcrevem.

O padre Thomas José de Aquino nas suas duas edições das obras de Camões de 1779 e 1782, não consultou o autographo dos commentarios de Manuel de Faria e Sousa aos Lusiadas; como estes se achavam impressos não curou do manuscripto, e assim não foi por elle examinado. Não digo isto como uma censura ao editor, o qual sem duvida fez valiosos serviços á litteratura patria, tornando vulgares pela imprensa algumas composições do nosso Poeta de que o publico não tinha conhecimento, dando uma edição mais completa das suas obras; digo-o porém para advertir que no volume por elle desprezado fui ainda descobrir differentes poesias, redondilhas, esparças, voltas, etc. e com esta acquisição enriquecemos o nosso peculio.

Se o Ariosto e Tasso encontraram interpretes que o deram a conhecer na lingua portugueza, de Petrarcha não me consta de traducção conhecida, se exceptuarmos alguns sonetos traduzidos por Camões, pois comquanto tres portuguezes se quizessem dar ao trabalho de o verterem, o primeiro, João Pinto Delgado, que escrevia no começo do seculo xvii, deixou a sua traducção manuscripta, a qual pelo metro em que era elaborada (oitavas) differente do do original, não indica dever ter subido merecimento. Os outros dois se serviram da lingua castelhana; o primeiro Salusque Lusitano que traduziu a primeira parte que se imprimiu em Veneza no anno de 1567. e Henrique Garcez,

traductor tambem dos Lusiadas, que passou para aquella lingua os sonetos e canções do poeta italiano em Madrid no anno de 1591. Possuindo uma traducção portugueza verso a verso dos Triumphos de Petrarcha, julgámos que seria offerta agradavel aos nossos compatriotas se lhes dessemos pela primeira vez na nossa lingua o poeta italiano traduzido, e que esta dobraria em valor sendo elaborada pelo seu emulo e admirador, o nosso Camões.

A necessidade de irmos colhendo o pano a este prologo nos tolhe de apresentarmos aqui as multiplicadas rasões pelas quaes se comprova pertencer irrevocavelmente ao nosso Poeta este trabalho litterario; reservâmos demonstra-lo com evidencia nas notas quando tratarmos d'elle. Parece que a traducção fôra feita para uso da amante, por uma referencia que se encontra notada; porém julgo que a não chegou a ver. E quantas vezes os livros de auctor alheio não têem sido interpretes de uma paixão, terceiros para com damas, e indicadores de sentimentos occultos que a boca não ousava revelar? A margem de um manuscripto de Virgilio do uso de Petrarcha, servia de registo dos seus affectos e de obituario da sua Laura; na margem do livro do Poeta latino, meias apagadas pelas lagrimas do amante inconsolavel, se liam estas dolorosas palavras: «Laura que resplandecia com tantas virtudes, que eu tantas vezes celebrei em os meus versos, appareceu a estes meus olhos pela primeira vez aos 6 de abril em Avinhão, na igreja de Santa Clara. Era então mancebo; em a mesma cidade, em o mesmo dia e á mesma hora do anno de 1348 a estrella de Laura deixou de raiar sobre a terra. Esta mulher tão bella, tão casta foi enterrada no mesmo dia após de vesperas na igreja dos Franciscanos de Avinhão. Subiu ao céu que a havia emprestado á terra. Para me recordar a lembrança melancolica de uma perda tão pungente, consignei n'este livro esta ementa, com uma alegria misturada de amargura. A morte de Laura me dá a certeza que pouco tempo me resta para viver; depois que se rompeu aquelle elo da minha existencia, espero com a ajuda de Deus poder renunciar sem fadiga a um mundo onde encontrei tantas decepções, e onde a esperança é tão vã como caduca».

Os amores de Camões foram agitados como a sua vida; como os de Petrarcha foram revelados nos mais bellos sons que a

lingua presta á musica da poesia, nos mais ternos e acalorados affectos com que o coração sabe sentir. Entre as contrariedades com que foram assaltados, mais de uma vez perturbou-lhes o remanso o ciume; esta dor tartarea, como lhe chama o mesmo Camões, este sentimento cem vezes injusto e violento por uma que tem rasão, mas que por uma antithese incomprehensivel se traduz em amor. Assi na traducção manuscripta um signal indicativo aponta com o dedo para um logar do commentario (de Gesualdo) a este verso:

Del re sempre di lagrimi digiuno.

que Camões traduz assim

Do cruel rei de choro sempre gegum. (Ita.)

O logar que o Poeta portuguez escolheu para deixar consignada em epilogo as phases infelizes e tormentos de um amor desgraçado a que a morte decepou a ultima esperança, é este: «Que nunca é farto de chorar, porque o apetito é tal e tão forçoso que emquanto se não alcança o desejado objecto de contino nos afflige, e depois de alcançado o temor de o perder e o ciume da dama nos consume; assim que sempre o amor é occasião de lagrimas e de dor». Parece que quiz que ficasse no livro palpitante a antiga ferida, e que ao enxergar essa cohorte de mortos que o poeta italiano faz desfilar, a morte, tambem porventura fresca da sua Natercia, o acordou para a representação do sonho da vida passada, que em poucas palavras, como um epitaphio na mansão dos mortos, quiz deixar apontada em uma pagina do seu pocta valido, como este o havia feito na do de Mantua.

Outro manuscripto que possuimos do seculo xvn nos forneceu algumas poesias ineditas, e o poder completar algumas já impressas que não estão inteiras, e variantes, tornando-se entre estas notavel uma á elegia 11. Este manuscripto, ou antes manuscriptos, porque são dois encadernados na mesma capa, e que infelizmente não estão completos por lhe faltar o principio e o fim, e deverem por isso ter-se perdido algumas poesias de Camões, comprehende, a primeira parte, poesias de differentes auctores contemporaneos, Bernardes, Caminha, D. Manuel de Portugal, Jorge Fernandes, vulgo o frade da rainha (D. Catharina); e à segunda parte, que é em letra differente, pertence exclusiva

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