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mente a Francisco de Sá de Miranda, de quem traz algumas poesias ineditas.

De alguns outros manuscriptos quasi todos do seculo XVII extrahimos como agulha em palheiro uma ou outra poesia, sem que de algumas possamos denunciar-lhe de uma maneira positiva a origem. Quem está habituado a manusear estas collecções com o simples titulo de Miscellaneas ou Papeis varios, verdadeira feira da ladra da litteratura, onde muitas vezes ao lado de um autographo de subido valor, está a mais trivial sandice, é que póde avaliar a difficuldade de baptisar com um titulo estas, pela maior parte, informes collecções.

Na edição de 1595 vem uma poesia que começa:

Vae o bem fugindo, etc.

Estas endechas traz Faria e Sousa manuscriptas e se acham impressas nas obras de Bernardes; deve-se porém advertir, que parte das que vem impressas em nome de Camões, isto é, o principio não vem nas obras do poeta do Lima. Aindaque me queria abster de tocar na questão do plagiato de algumas obras de Camões feito por este poeta, comtudo, á vista d'esta pequena poesia e de outras que a acompanham no MS. de Faria e Sousa, não poderei deixar de dizer, postoque de dizer, postoque de passagem, alguma cousa sobre esta materia. As poesias de Bernardes publicaram-se em 1596, um anno posteriormente á publicação das Rimas de Camões; na verdade não sei que motivo teria Bernardes para não dar por inteiro uma composição sua, o que de alguma maneira póde dar logar a suspeitar de a ter encontrado mutilada em alguma copia de que se serviu; o facto é que esta poesia appareceu primeiro e em vida de Bernardes na edição primeira (1595) das Rimas de Camões, publicada por Surrupita, postoque depois foi eliminada nas outras edições. Um argumento porém que reputo de maior força e de mais grave peso contra Bernardes é

o soneto

Horas breves de meu contentamento, etc.

um dos que se suppõem usurpados. Este soneto, differentissimo nos tercetos em ambos os poetas, se acha glosado por dois contemporaneos de Camões, Fernão Alvares do Oriente e Balthazar Estaço; o primeiro, alem de enthusiasta de Camões, seu amigo

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e camarada na India, e tanto uma como outra glosa é feita sobre a versão como vem nas obras de Camões. Inclino-me pois a suspeitar que algumas poesias de Camões foram usurpadas e introduzidas nas obras de Diogo Bernardes; porém estou persuadido que n'este numero não entram as eglogas, pelo menos parte, salvo se Bernardes as apropriou a differentes circumstancias e logares, o que podia comtudo acontecer, como a quem se aproveitou da canção XII de Camões, a qual vimos alterada ou antes estropiada em duas versões manuscriptas e uma d'ellas applicada á villa da Lousã. Que o poeta do Lima era justa ou injustamente reputado cumplice de plagiato das obras do nosso Epico é evidente, não só pelas já referidas endechas, mas pelas oitavas · a Santa Ursula, do que o mesmo Bernardes se doe no soneto dedicatorio dirigido á infanta D. Maria.

Eu fiz (como já disse o Mantuano)
Os versos dessa virgem esposada,
Que foi com onze mil martyrisada:
A honra me roubou hum vil engano

Se foi ainda roubada tão aceita.

Porém as peças roubadas, isto é, se o foram, pois onde não ha plena prova, mas só vehemente indicio, assenta mal sentença decisoria, não diminuem a gloria de Camões, nem augmentam a de Bernardes, poeta suavissimo no estylo, mas muito áquem da sublimidade poetica do seu emulo. Que as poesias do nosso Pocta corriam algumas anonymas e que d'ellas se aproveitavam os outros, nós o temos não só do testemunho de Faria e Sousa, mas por propria confissão do mesmo Camões, o qual na carta i remettendo algumas poesias, assim escreve á pessoa a quem é dirigida: «Esta vae com a candea na mão morrer nas de V. M.c e se dahi passar seja em cinza, porque não quero que do meu pouco comam muitos. E se todavia quizer metter mãos na escudella, mande-lhe lavar o nome e valha sem cunhos». D'esta declaração se colhe que as suas poesias davam, ou interesse pecuniario ou de reputação, e assim pede á pessoa a quem escreve conserve o anonymo, com a idéa talvez de publicar depois pela imprensa o cancioneiro das suas poesias. A demasiada franqueza de Camões em confiar a amigos as suas composições, deixando d'ellas tirar copia, dava logar a estas usurpações; quem era tão pouco

avaro do seu thesouro, antes nosso, os seus Lusiadas, que o confiava para d'elle se tirar traslado antes da sua impressão, como sabemos com certeza, que caso faria das suas poesias lyricas que por certo deveria ter em menos preço?

Tres comedias ou autos, como é sabido, nos deixou Camões: os Amphitriões, a de Filodemo e a de El-Rei Seleuco, que se imprimiu depois. Examinando com reflexão a novella dramatica de Filodemo se conhecerá pelo estylo apaixonado que apparece de quando em quando que o Poeta pretende de alguma maneira desafogar o seu mau humor, isto por certas referencias que são faceis de colher, queixando-se de contradicções experimentadas, e contra aquelles que lhe roubaram a vista da sua amante. Está esta peça não pouco incorrecta no metro e na prosa e-em partes cheia de inepcias que nunca Camões proferiu, como trocar valle Luso por val Chiusa, e outras. A vista d'isto, pela confrontação de um manuscripto, me resolvi a po-la em melhor ordem, addicionando-a com logares omittidos, e á vista tambem da rarissima primeira edição.

Se formos accusados de divulgarmos incorrectas as poesias do Poeta, como já o fizeram os nossos antecessores, se a sua sombra surgisse e nos increpasse d'este abuso de fé de as irmos buscar á manada dos engeitados, como elle chama a esses filhos mal gerados da sua Musa; se como o poeta latino nos clamasse defuit scriptis ultima lima meis, lhe responderiamos afoutamente: Fizemo-lo, porque os vossos defeitos se approximam ainda ás perfeições alheias; porque tambem do lodo se extrahe o oiro, da concha se tira a perola. Aonde apparecer o erro attribua-se ao copista, quer antigo, quer a quem agora de novo o traslada, e a reputação do Poeta fica incolume.

Na reproducção das poesias já publicadas fomos assaltados de uma perplexidade inevitavel no systema que tinhamos a adoptar. Deveriamos dar textualmente as edições princeps das Rimas? Comquanto este alvitre nos livrasse de graves embaraços, e o seguiriamos incontestavelmente se tivessemos a certeza que as suas poesias fossem copiadas dos autographos, incorreriamos comtudo no inconveniente de apresentar ao publico, nem sempre facil de contentar, uma edição com que não está acostumado, e assim preferimos dar-lhe a edição de Manuel de Faria e Sousa, reproduzida por Thomás de Aquino e retocada aqui ou acolá pelos

eruditos editores da edição de 1834, os srs. José Victorino Barreto Feio e José Gomes Monteiro. Porém, para contentar tyrios e troyanos, nos lembrou dar em notas as variantes d'estas edições princeps, acrescentadas de algumas outras de manuscriptos que tivemos occasião de percorrer. A ordem A ordem que seguimos n'estas annotações é esta: damos uma explicação da poesia a que se allude na nota, as observações de alguns expositores, principalmente de Manuel de Faria e Sousa, ás quaes ajuntámos as nossas, as imitações de alguns escriptores e as variantes; o texto da edição vae em italico e as variantes e o mais em redondo. D'esta arte o leitor se tornará possuidor, com a acquisição d'esta nova edição, das outras rarissimas e mui difficeis de obter, conciliando-se por esta fórma os differentes paladares dos leitores; e para que estes podessem adquirir o conhecimento como se foram colleccionando estas poesias nas successivas edições até á ultima que precedeu a que ora sáe, julguei conveniente juntar uma tabella chronologica, accusando a edição em que appareceram pela primeira vez, reunindo tambem as ineditas que novamente dou a publico. Estas não vão na ordem em que as encontrei nos manuscriptos, desfiei-as para as enfiar em rosarios de sonetos, canções, elegias como aquelles que me precederam, para facilitar o conhecimento das citações, o que certamente eu não faria se fosse o primeiro editor das obras d'este ou de outro qualquer auctor, pois antes preferiria seguir uma ordem chronologica, procurando quanto fosse possivel ligar-me á epocha das composições para mostrar o incremento progressivo do desenvolvimento do genio do auctor, e marcar as differentes phases da sua vida.

Não nos cabe aqui logar, nem nos julgamos habilitados para condignamente avaliar as bellezas das poesias de Camões, o que tentaremos comtudo fazer em notas até onde chegarem as nossas forças. Pedimos comtudo venia ao sabio philologo e eloquente prosista, o respeitavel bispo de Vizeu D. Francisco Alexandre Lobo, já finado, e cuja memoria muito acatâmos, para divergir da sua opinião ácerca da resumida selecta que fez das melhores poesias do nosso auctor. Elevado á mais alta posição hierarchica no estado ecclesiastico, e por isso não iniciado, como elle proprio confessa, n'estas materias, obrigado, para me servir da expressão do nosso mesmo Camões, a quebrar pensamentos profanos na pedra do furor santo, não admira que não se atrevesse

a prescrutar e revelar os mysterios amorosos que encerram as ternas e maviosas poesias do poeta, cuja vida escrevia, e que o calor d'estas não aquecesse a quem abrazava amor mais puro, desligado pela idade e elevado ministerio de todo o terreno.

E por poetas, como bem adverte um poeta portuguez, que os poetas devem ser lidos e avaliados; é na idade viril, quando arde o coração, quando a vida resvala por entre as flores das illusões, apartando de si os abrolhos aridos do positivismo, que mata todos os gosos da alma, afasta todo o pensamento nobre, que a poesia deve ser lida é apreciada. Hospede ex professo d'esta arte encantadora, porém nem por isso amando menos os seus primores quando os maneja o genio, limitar-nos-hemos pois a deixar consignadas aqui ou ali as impressões que recebemos das bellezas poeticas do nosso auctor. E como, aindaque a diversidade de estado nos não tolhe, como ao illustre prelado a que alludimos, passeiar mais desafogadamente por entre este ameno jardim de flores, respirando-lhe as ultimas fragrancias, a idade que vae decaíndo póde esfriar o enthusiasmo, procuraremos avivar as cinzas amortecidas que cobrem ainda um resto de fogo, que tem em breve de reduzir-se a ultimas cinzas, faremos ascender ao coração a ultima seiva, para que este verdeje como a planta que por isso que brota já no outono, tem que seccar na proxima primavera, quando a vida se anima para tudo e para todos. Não espere pois o leitor ver-nos friamente com os quatro codigos poetico-architectonicos em uma mão, e o compasso na outra, traçar taboleiros quadrados, redondos, de varias fórmas onde encerre estas flores n'esses jazigos que abafam, acanham a planta. Sei bem que nem sempre as poesias do nosso grande Poeta satisfazem os nimiamente rigoristas; muitas vezes o soneto se transforma no idylio, outras no madrigal, que o Poeta geme na canção, se serve da elegia para exaltar um heroe, como Virgilio na egloga eleva o tom talvez mais alto do que seria conveniente á rudeza de pegureiros; mas que me importa, se quasi sempre é bello; que me importa o titulo, se eu avalio o poema por o que elle é; que me importam as nuvens quando o sol dardeja os seus raios, as fulmina e dissipa?

Parece-me n'este logar opportuno prevenir tambem o leitor

1 Poeticas de Aristoteles, Horacio, Vida e Boileau.

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