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que a estima que seus talentos poeticos lhe grangeárão na Côrte, não influisse pouco para esta sua feliz resolução. Com effeito elle mesmo ou seu filho Luiz, seu primeiro editor, nos conservou em suas obras a historia de seus primeiros ensaios dramaticos, que parece favorecer esta conjectura. A Rainha Dona Beatriz, mulher de Dom Manuel, tendo ficado mui agradada do monologo que Gil Vicente, no caracter de pastor, foi recitar na sua mesma camara, onde ainda se achava de cama, de parto do principe D. João, depois D. João III., congratulando-a pelo feliz nascimento do herdeiro da coroa, lhe pedio, esperando talvez que o poeta mudasse as settas em grelhas, que em dia de Natal lhe repetisse aquella mesma composição, endereçada ao nascimento do menino Deos. Gil Vicente julgou dever satisfazer ao pedido com mais propriedade e compoz para esse dia o primeiro auto que se acha nas suas obras de devação. Temos pois que os primeiros ensaios dramaticos do nosso poeta datão de 1502, anno em que nascco D. João III. Desde então vemos sua musa em constante actividade em similhantes occasiões, durante os dous reinados de D. Manuel e de seu successor, não havendo festa de anno, de nascimento ou casamento de pessoa Real, para cujo esplendor não contribuissem os brilhantes talentos de Gil Vicente.

Foi durante o último destes dous reinados que a fama do nosso poeta cresceo a ponto, que,

como observa um litterato allemão, (1) não havia por esse tempo em toda a Europa poeta comico mais affamado nem mais querido dos seus,

do

que o poeta portuguez. Porém não somente em Portugal se admirava Gil Vicente; o seu nome ja corria pelos mais cultos paizes da Europa. Na verdade, se os louvores recebem valia da auctoridade da pessoa que os dá, nenhum poeta nesse tempo podia gloriar-se de seus successos dramaticos como aquelle a quem Erasmo deu o primeiro logar entre os comicos modernos. Este grande restaurador das lettras, occupado como estava com os mais serios e multifarios trabalhos litterarios, não julgou perder o tempo que applicou ao estudo da lingua portugueza, o que somente emprehendêra afim de completar o prazer que uma imperfeita intelligencia das bellezas de Gil Vicente lhe tinha causado. (2)

Emquanto a fama do nosso poeta corria entre os litteratos estrangeiros, em Portugal a inveja, desprezivel paixão d'almas ineptas, mas presumidas, disputava a Gil Vicente a honra da invenção de suas peças; e como acontece quasi sempre com tão miseraveis creaturas, defraudavão seu compatriota desta gloria para a concederem a estranhos, accusando-o de furto

(1) Bouterweck, Geschichte der portug. Poesie und Beredsamkeit, pag. 190.

(2) Bibliot. Lusit. art. Gil Vicente.

litterario; como se quizessem affastar para longe de si o brilho do merito superior que os incommodava. Foi este atrevido insulto que deu origem á famosa farça de Inez Pereira, da qual diz o crítico que acima citamos, que a ter ella sido composta por Gil Vicente no tempo de Moliere, sería uma das comedias de caracter admiradas na Europa. (1) Gil Vicente querendo responder de maneira que de uma vez impozesse silencio a seus detractores e confundisse a inveja, usou de um meio tão novo como efficaz para o seu intento. Achando reunidos seus admiradores e seus zoilos, talvez nos mesmos serãos do Paço, declara que lhe chegaram aos ouvidos as maliciosas insinuações contra os seus talentos; e para sua desaffronta se offerece a compor uma farça sobre qualquer assumpto que seus adversarios lhe proponham. O rifão popular, que ainda hoje voga entre o povo, Antes quero burro que me leve, que cavallo que me derrube, foi o thema que lhe appresentaram. A engenhosa applicação deste proverbio, as situações verdadeiramente comicas que se encontram nesta farça, a verdade sempre sustentada com que pinta os caracteres de Inez, de Pero, e do Escudeiro; a naturalidade, graça e fluencia do dialogo, o inimitavel sal, a elegancia de estylo, a musica harmonia da versificação, formam a mais victoriosa resposta que jamais es

(1) Bout. pag. 113.

criptor, em iguaes circumstancias, deu a scus zoilos.

Não era o talento poetico o unico que Gil Vicente possuia. Não só, como se verá em alguns logares de suas obras, compunha elle a musica das folias e cantigas que introduzia em suas peças, mas, como o celebre Moliere, reunia ho talento de auctor o de actor, como se vê dos seguintes versos do nosso famoso André de Resende, seu contemporaneo, que por comprovarem este facto, e serem um documento da ésfima em que eram tidas as composições do nosso poeta, aqui deixamos transcriptos.

Cunctorum hinc acta est comedia plausu, Quam Lusitana Gillo auctor et actor in aula Egerat ante, dicax atque inter vera facetus : Gillo focis tevibus doctus prèstringere 'mores; Qui si non lingua componeret omnia vulgi, Sed potius latra, non Grecia docta Menandrum Ante suum ferret; nec tam Romana theatra, Plautinave sales, lepidi vel scripta Terenti Jacturent; tanto nam Grillo præirct utrisque, Quanto illi reliquos inter, qui pulpita röre Oblita Coryceo digito meruare faventem.

A peça de que Resende aqui falla é Tragicomedia de Lusitania, que Gil Vicente tinha composto para o nascimento do Infante D. Manuel, que morreo em tenra idade, a qual foi representada em Bruxellas em 1532, em casa

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