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tica aos que ainda alcançaram os raros, que dignamente a exercitaram. Antevia-se qual devia ser a locução de Sinval em conformidade com o porte magestoso: estylo de imagens epicas, phrases cadenciosas e rythmadas, vehemencia e transportes.

Eis a primeira impressão:

Sinval declamava sonoramente: feria cada syllaba da palavra com musical accentuação; correcto, sem demasiar-se no toque das desinencias

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excesso que orça

pelo defeito exprimia a palavra com graciosa e portugueza limpidez. Era já prazer ouvil-o, ainda antes de The entender bem no amago a profundeza, por vezes ennublada, do pensamento.

Por que vem este homem encanecido ao pulpito? - perguntaria algum ouvinte mais desprendido do panegyrico de S. Philippe Neri, que o professor da escóla medico-cirurgica prégava.

Desejo de gloria, conquistada no mais ingreme da montanha, onde a vaidade a persegue? Vaidade de alliar á nomeada obtida no magisterio das sciencias positivas o renome de abalizado theologo?

Conversão no declinar da vida para os declives escuros que levam aos penetraes da eternidade?

Ascetismo? exaltação religiosa? ardor de missionario? intento de ganhar almas com o extraordinario arro

jo de entrar na ganancia d'ellas, pela mais angustiada sahida dos gozos mundanos?

A estas perguntas, envenenadas talvez com o sorriso da incredulidade, respondeu Sinval assim do pulpito:

« Aos quatorze annos de minha idade, e no dia em que a santa igreja celebra a Conceição da Virgem Mãe; acabando de me ser lançadas as vestes do sagrado instituto neriense; ao vêr-me proclamado e reconhecido filho vosso 1 (ambição de todos os meus dias desde o uso da razão), senti-me tão feliz (e o era!), cheio de tantos e tão grandes beneficios n'este só beneficio, que, para desafogo dos sentimentos de gratidão, que me não cabiam no peito, e occorrendo-me aquillo do Exodo: <consagra-me o teu primogenito» prometti ser o vosso panegyrico o primeiro sermão que prégasse. Imperiosas razões de familia, segundo as leis do sangue, me violentaram a deixar a vossa casa.

• Vós bem sabeis que eu não falto å verdade quando affirmo que de bom grado preferiria que me arrancassem as entranhas, a ser arrancado dos braços de meus superiores, de meus mestres, que tão dignamente

10 orador apostrophava o patriarcha S. Philippe Neri.

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vos representavam! Outra carreira, outro destino mui

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diverso me aguardava 1. . . . »

O orador, interrogado pelo silencio dos almotacés do fôro intimo, respondêra com aquella simplicidade affectuosa e compungida. Era a verdade, a verdade estreme, que eu lhe tinha ouvido em conversações intimas, em communicativas expansões de duas almas, que haviam provado o travor de muitas das maiores angustias d'este desterro.

Sinval fallava-me com saudade do seu convento, dos seus padres, dos seus mestres, da sua infancia, dourada de piedade e esperanças. Como a saudade era pura e digna de consolação, o céo dava-lhe lagrimas para allivio; e, chorando, aquelle gentil e gracioso velho espelhava nos olhos um coração novo, que ainda, cheio de vida, e resgatado das prisões em que desfallecêra, se offerecia a Deus.

Matriculou-se, um dia, Camara Sinval nas aulas theologicas de moral e dogma. Isto foi materia de riso para um publico especialmente... risonho. Os professores d'aquellas cadeiras temeram-se de algum disfarçado philosopho, que ia acintemente desauthorar os compendios e os mestres. Em honra do proposito do alumno,

4 Sermão de S. Philippe Neri: o primeiro d'esta collecção.

sahiu a desfazer as suspeitas o bispo D. Jeronymo Rebello, particular amigo de Sinval 1. Passados mezes, o lente da escóla medico-cirurgica do Porto obteve licença de prégar, e do pulpito explicou, assim como eu a trasladei do seu sermão, a causa piedosa da sua investidura.

Eu abstenho-me, por duas graves razões, de firmar a minha opinião sobre o merecimento das orações posthumas exceptuada uma que se deram á estampa, com o beneplacito dos leaes amigos de Sinval, e mórmente do snr. doutor Velloso da Cruz, depositario dos manuscriptos do seu collega, e amigo muito do coração. Uma das graves razões é a incompetencia; porque requer muito saber o direitamente aquilatar obra, que não se pauta pelo molde d'uns escriptos, nos quaes a fórma é o essencial, e a idéa um accidente desnecessario ás decisões da critica. A outra razão é que estas orações, se fossem estampadas em vida do seu author, necessariamente haviam de ser com muito esmero ajoeiradas de superfluidades, imperceptiveis na declamação, e sensiveis na leitura. O snr. Camara Sinval nunca me manifestou o minimo desejo de imprimir os seus sermões; e,

1 Era intento do illustre professor dedicar as suas orações, quando ellas fossem estampadas, ao prelado portuense. A estreita amizade, que os ligou, foi honra para ambos.

se eu, por vezes o incitava a publical-os, recusava-se dizendo que lhe seria menos custoso fazel-os que refazel-os. Era modestia a razão da recusa; mas isto importa para bem avaliarmos a muita lima, que elle daria aos seus escriptos, antes de imprimil-os.

No entanto, a opinião corrente dos entendidos em materia de eloquencia sagrada foi sempre favoravel ao snr. Sinval, se bem que os theologos o tivessem em conta de menos abastado que o desejavel em citações dos santos padres. Estes theologos, sedentos de latim, ignoravam que o snr. Sinval sabia mais latim, e mais trechos dos santos padres que uma Sorbonna. Em controversias religiosas, era um manancial de textos, com que a minha pobre philosophia se ia vencida de evasiva em evasiva pelas veredas da razão, em quanto elle, furtando-me as voltas, me sahia com os santos padres, è com o latim de todos elles.

Em oratoria sacra, o meu amigo sacrificára ao tempo algúns preceitos e exemplos de seus mestres, e dos famigerados oradores da sua mocidade. Não sacrificára os atavios excessivos da linguagem, porque não podia : nenhum homem do maior e mais flexivel engenho póde roubar-se de todo em todo ás formulas em que lhe vasaram o espirito nos annos da educação litteraria. Sinval compunha lentamente, declamava cada periodo, repetia

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