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monioso, quanto o nome do baptismo tinha de plebeo, e prosaico. Deste matrimonio consta, que teve uma filha por nome D. Marianna, a favor de quem, por sua morte, despôs da metade da sua Tença de duzentos mil réis, deixando a outra metade a sua mulher, tendo alcançado para isso carta de mercê de El-Rei D. Filippe II., que se acha averbada nos Livros da Chancellaria daquelle Monarcha. Repartido entre o desempenho das obrigações do seu cargo, os affectos da sua familia, e o cultivo da poesia, e conversação dos seus numerosos amigos, passou o nosso Poeta uma vida, si não opulenta, ao menos quieta, e tranquilla; e na tranquillidade, sem indigencia me parece a mim, que consiste a verdadeira felicidade deste mundo, e esta desfructou Caminha até ao dia 9 de Setembro de 1589, em que terminou a sua existencia.

As poesias de Caminha foram muito estimadas no scu tempo, pois o seu nome se encontra honrosamente mencionado nas obras dos melhores Poctas contemporaneos, e muito especialmente nas de Ferreira, e Bernardes, parece porém, que eram mais conhecidas no circulo dos entendedores, e discipulos da eschola de Ferreira, do que do público, á excepção de um pequeno número dellas que sahiram á luz junto com as obras d'outros Poetas, ou em algumas Collecções espirituaes. Sabia-se apenas, que na livraria do Duque de Cadaval existia um volume com algumas poesias de Caminha, e que a Academia Real das Sciencias havia alcançado a permissão de fazer extrair uma copia desse mesmo volume.

Nestes termos podia Pero de Andrade Caminha ser considerado como um Poeta perdido, assim como muitos outros daquella epocha, de que apenas conhecemos os nomes, e os louvores, que os contemporaneos lhe tributaram.

Um ditoso acaso fez resuscitar este Poeta do esquecimento, em que jazia sepultado havia dous seculos. Corria o anno de 1784 quando a Academia Real das Sciencias, sempre assidua, e zelosa promovedora dos progressos, e adiantamentos da nossa literatura, incumbio dous dos seus mais distinctos Socios o Abbade José Corrêa da Serra, e Fr, Joaquim Forjaz, da honrosa missão de examinar a numerosa Collecção de manuscriptos existentes na Bi

bliotheca do Convento da Graça desta Cidade, a fim de descubrir nella algum, que podesse servir ao seu louvavel projecto.

Entre estes manuscriptos, por elles examinados, appareceu felizmente um Codice de poesias de Pero de Andrade, mas em que não havia um unico verso, dos que se liam no volume que possuia o Duque de Cadaval, o que dava bem a vêr, que eram dous Tomos da mesma Collecção. Contente a Academia com a fortuna deste achado, tractou logo de alcançar dos Religiosos Gracianos a faculdade de fazer trasladar aquellas poesias, o que lhe foi levemente outhorgado; e juntando-as com as que já possuia, deu ordem para que fossem impressas na sua propria of ficina, o que se effectuou, em um volume de oitavo portuguez, e em excellente papel e typo, no anno de 1791, juntando assim mais este serviço importante, feito á lingua, e á literatura, aos muitos de igual genero, de que The eram já devedora.

Pero de Andrade Caminha considerado como Poeta, é uma especie de meio termo entre o Doutor Antonio Ferreira, e Diogo Bernardes, tanto em bellezas, como em defeitos. Tem elle tão pouca imaginação creadora como elles ambos, e menos abundancia de idéas, que o primeiro, e menos amenidade, que o segundo. Sua expressão é mais forte que a de Bernardes, e menos vehemente que a de Ferreira. Não tem o trabalho, e arte deste, nem a naturalidade e graça daquelle, mas tambem não descahe tanto. na dureza de um, nem nas negligencias, e prosaismo do outro. Seu caracter, demasiado serio, faz com que o seu estylo pareça ás vezes secco, e desabrido; é o unico dos nossos Poetas antigos em cujas obras se não encontra uma só comparação, pelo menos havendo-o lido bastantes vezes, não me recordo de haver deparado com alguma, e este defeito é grave, porque as comparações sempre foram consideradas como um dos mais bellos ornamentos do estylo poetico.

As Eclogas de Caminha, em número de quatro, sam escriptas em linguagem pura, e quasi sempre no verdadeiro estylo bocolico, e podem emparelhar com as melhores, que naquelle tempo se escreveram; vêja-se o canto alternado de Andrageo, e Pierio na primeira dellas.

ANDRAGEO.

Asperissima Phylis, a meos danos, De que eu, por aprazer-te, mais dezejo, Não sei se isto he verdade, ou sam enganos, Ouço dizer que hes branda, e não o vėjo. Acrescenta-me, Phylis, a tristeza

Mudares para mim tua natureza.

PIERIO.

Formosissima Phylis, si eu tivera
Do gran Tytiro a fama, a voz, e o canto,
A fraula, a voz, o canto a ti só dera,
Co' mesmo amor, com que ora a ti só canto.
Mas isto, Phylis, he pura verdade,

E muito mais te dá minha vontade.
ANDRAGEO.

Amo-te, Phylis, quanto amar-te posso,
Vêjo que quanto podes te avorreço,
Escondido lá tens o lume nosso,
Sem elle nem me vêjo, nem conheço.
Deixa-te, Phylis, vêr, ah! não te escondas,
Só porque mal ao meo amor respondas.

PIERIO.

Canto-te, Phylis, quanto sei cantar-te, Sempre a teu canto dou tudo o que entendo, A meos versos não busco estilo, ou arte, Pois nunca ham de chegar ao que pertendo. Disto ha, Phylis, em mim continua queixa, Mas assim como sei cantar-te deixa.

ANDRAGEO.

Inda, Phylis, que n'alma, com que te amo, Sempre te tenho, si não posso vèr-te, Dos olhos tristes lagrimas derramo,

Que a abrandar-te não bastam, nem mover-te. Mas si a lagrimas, Phylis, não te abrandas, Não tens as condições, como ouço, brandas.

PIERIO.

Inda, Phylis, que sempre a alma te canta, Si á voz teo canto ás vezes se me estrova, Se cobre o esprito de tristeza tanta, Que se enche de huma dôr aspera, e nova, E não se gasta, Phylis, esta pena

The que outra vez ao canto a voz se ordena.

ANDRAGEO.

Todo hum anno não he, Phylis, tão grande Quanto a mim, sem te vêr, hum breve espaço, Nem ha quem minha grave dôr me abrande, Sem a vista, em que só me satisfaço. Dam teus olhos á pena, Phylis, termo, Sem elles quanto vêjo he escuro, e ermo.

PIERIO.

Não he, Phylis, tão grande hũa triste vida, Quanto a mim, sem cantar-te, espaço breve, De mi só a voz, que de ti canta, he ouvida, Só cantado he de mim quem de ti escreve. Enche teo nome, Phylis, meos ouvidos, Tenho todos os outros esquecidos.

ANDRAGEO.

Phylis, não he tão aspero, e tão duro
O bravo Boreas na maior tormenta,
Nem he o triste Inverno tão escuro
Quando a sua mór furia representa,
Quanto a mim, Phylis, he danoso, e forte
Vêr de ti despresada a minha sorte.

PIERIO.

Phylis, não he tão doce, nem tão brando
Zephyro, quando mais brando o sentimos,
Nem tão alegre, e claro o Verão quando
Mais formoso, mais claro, e alegre o vimos,
Quanto, Phylis, a todo o peso grave,
Tua branda voz sempre he doce, e suave.

ANDRAGEO.

Minhas tristezas, Phylis, graves sejam
Quando não, vêjo os teos olhos formosos,
Outra vez alegria nova vêjam

Os meos do que em ti viam saudosos,
A dôr com elles, Phylis, se desterra,
E sem elles a paz se muda em guerra.

PIERIO.

De Flores seja o campo, Phylis, cheio,
De côres ria, o bosque, o prado, e o valle,
Meta-se o duro tempo logo em meio,
Tudo seque, destrua, mova, e aballe,

Si te vás, Phylis, flôr, e côr perece,
Si tornas logo tudo reverdece.

ANDRAGEO.

Por mil Arvores vou, Phylis, formosa,
Contando quanto te amo, e me desamas,
Verás nellas a pena rigorosa,

Que este peito me accende em vivas chamas,
Porque, quando a voz Phylis, me falesça,
Nellas este amor, e odio se conheça.

PIERIO.

Por mil arvores, Phylis, o teo nome
Tenho, como em meu peito está, esculpido,
Nellas digo, que não ha quem assome
Ao louvor, que de todos te he devido;
Porque quando eu cantar-te já não possa,
De mim se ouça inda o bem da edade nossa.

Estas Cantigas me parecem no verdadeiro estylo pastoril, singellas, mas elegantes na expressão, sem que com tudo excedam o alcance da intelligencia dos Zagaes, a quem sam atribuidas.

Pelo exordio da segunda se conhece, que o Poeta lia Virgilio, e fazia deligencia por imita-lo nas suas pastoraes.

Inda te peço, Musa, hum favor grande,
Novo canto me dá, com que aos ouvidos
De Marilia o amor de Franco mande.

De Marilia meos versos sejam lidos,
E d'huma branda voz, a Franco amiga,
Mil vezes a Marilia repetidos.

A' sorte do meo Franco dura, e imiga
Quem versos negará? que ha quem a grave
Dôr sua em alta voz com dôr não diga?
Amor, e hum brando Zephyro, e suave
Seo amor aos ouvidos surdos leve,
Porque menos a pena a alma lhe agrave.
Franco, que ao Sol, á sombra, e frio, e neve
Nunca a Marilia mais, nem menos ama,

E que sempre a Marilia n'alma escreve.
Franco, que tristes lagrimas derrama,
E em suspiros do peito lansa fogo,
E a si por só Marilia se desama.

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