Chora; mas nisto vem c'os braços cheios De fructas o culpado em taes tardanças, Muito mais carregado de receios,
Que andam hombro por hombro de esperanças; O qual crendo dos gritos, e meneies O que lhe affirmam as desconfianças, Certo do que não crê no que adivinha Sem alma os Corpos vê, que n'alma tinha.
Os Filhos vê nos braços de Leonor, Da rigorosa morte, esquiva, e dura, Cortada a fresca, e tenra idade em flôr; E a ella morta, e pallida a Figura, Que inda parece viva ter o amor; No cimo lhe dos braços dependura Cada Filhinho, o rosto amortecido, Sem os soltar o corpo sem sentido.
Não chora, e pôsto já tinha perdido O juizo, não perde o sentimento, Que amor lhe dá na dôr novo sentido, Apoz do natural conhecimento: Da qual internamente convencido, Depois de respirar o grosso alento, As mãos deu ao trabalho suspirando, A doce Esposa, e filhos enterrando.
Apoz isto furioso vai correndo, Por aquellas Florestas, e espessuras, Com rouca voz mil lastimas dizendo, De magoa enternecendo as pedras duras Onde a fome cruel satisfazendo Alguma Fera nelle, a desventuras Tamanhas, deu o fim que tenho dito, Jámais tão desastrado em carta escripto.
Poucas situações podem encontrar-se tão dolorosas em um Poema, como a de um Esposo, e Pai obrigado a abrir nas areas de um descampado de Africa com suas proprias mãos o sepulchro, em que deve depositar os cadaveres de uma Esposa formosa, e querida, e de dous filhinhos bel
los como Anjos, e mortos de fome, e cançasso. A dôr profunda, de que o Poeta o pinta possuido no meio daquelle trabalho, sem derramar uma lagrima, nem soltar um suspiro, é um toque de mestre, e ao mesmo tempo philosophico. As grandes magoas, aquellas, que não admittem consolação, e que se acompanham do desespero, sam mudas, e sem pranto. Depois de D. Ignez de Castro, nenhuma Senhora Portugueza se fez tão famosa pelo excesso de suas desventuras as Musas porém a tomaram debaixo da sua protecção, e cobriram de flores a sua sepultura abandonada nas cercanias do Rio de Lourenço Marques, Jeronymo Côrte Real lhe consagrou um Poema inteiro, Luiz Pereira um Canto da Elegiada, e Camões as seguintes Estanças dos Lusiadas, que valem mais, que o Poema de um, e o Canto do outro, e que promettem mais duração.
Outro tambem virá de honrada Fama, Liberal, Cavalleiro, e namorado,
E comsigo trará formosa Dama,
Que Amor por gran mercê lhe haverá dado; Triste ventura, negro fado os chama Neste terreno meu, que duro, e irado Os deixará de hum crú naufragio vivos Para soffrer tormentos excessivos.
Verão morrer com fome os Filhos caros Em tanto amor gerados, e nascidos, Verão os Cafres asperos, e avaros Tirar á linda Dama os seus vestidos. Os cristalinos membros, e preclaros A' calma, ao frio, ao Sol verão despidos, Depois de ter pisado longamente C'os delicados pés a arêa ardente.
E verão mais os olhos, que escaparem De tanto mal, de tanta desventura, Os dous amantes miseros ficarem Na fervida, implacavel espessura. Ali depois das pedras abrandarem Com lagrimas de dôr, de magoa pura, Abraçados as almas soltarão, Da formosa, e miserrima prisão.
Camões para tornar o quadro mais pathetico finge que D. Leonor morreu abraçada com seu marido, apartandose nisto da Historia, que nos diz, que Manoel de Sousa, depois de haver sepultado sua Esposa, e seus filhos, pegando no que restava, se embrenhou com elle pelos matos, não havendo mais noticia delles.
Mas nem todos os episodios da Elegiada sam, como estes, desligados da acção: tal é no Canto XVIII. o accontecimento de um Alemão, que salvando-se da batalha com sua Esposa, é surprehendido pelos Mouros, que a ferem mortalmente, dando-lhe depois morte a elle junto ao cadaver da amada.
Vem c'os Tudescos huma Dama bella Com quem foi liberal a Natureza, As partes, que reparte, juntas nella Pondo como a que tanto estima e presa, Pôde quem tudo póde assim rende-la, Que Patria, Pais, e tudo em fim despreza, Por seguir seu amado, e doce Esposo, Hum Soldado Tudesco valoroso.
Este, depois de já desbaratado O Campo todo, põe a Esposa amiga Nas ancas de hum Frisão acostumado Para tão dura, e aspera fadiga, Hindo rompendo valoroso, e ousado Pela Gente cruel, gente inimiga, Que atraz o hia sempre perseguindo, Com lançadas a hum, e outro ferindo.
Vai chorando a coitada ali abraçada C'o doce amigo, o rosto atraz voltando, De purpura vestida, escabellada
Sempre do imigo o Esposo ali escudando. Qual nas ancas de Nesso a ingrata amada Dejanira, que a setta receiando
Tira á orelha já do braço forte,
Com que, oh Centauro, Alcides te dá morte.
Assim vai a Tudesca, e juntamente
A fere Amor, e a Canalha fera,
Que mais sente de Amor o mal que sente, Que daquelle em que certa a morte espera; Vêde como he hum d'outro differente, E quam pouco lhe ali então doera Perder a vida, não vivendo d'ella, Que lhe doe pela alheia de perde-la.
Mil magoas vai dizendo a sem ventura, Mil temores a cercam, e desconfiam, Sobre quem lhe dará a morte escura Fortuna impiedosa, é Amor porfiam. Antecipa-se aqui a sorte dura,
Vendo que amores já a consumiam, E faz com que hum Alarbe a lança atire, Ante que assi d'amor a triste espire.
Passa o ferro cruel, cruel, e agudo As entranhas da inclita Donzella, Que dando-lhe bradou: «Ditoso escudo << Pois tua vida póde defende-la ! » Fica o Esposo aqui pallido, e mudo, Que não pareceo dar a lança nella Como a verdade deu mais crua nelle Passando o corpo a ella, a alma a elle.
Onde o turbado Amante bem quizera Voltar pera vingar a morte crua, Si o brando rogo não lho defendera Com que a empreza lhe estorva a presa sua; Dizendo: << Esposo meu, si se perdera « A minha vida só, sem essa tua,
Comprando-a tão barata, aqui com ella « Ganhava o grande gosto de perde-la.
<«< Mas como cá sem vós, ficar eu posso ? « Como apartar nos póde o tempo imigo, « Si he verdade que estou no peito vosso, « Como sempre nesta alma estaes cómigo? « Olhai a obrigação deste amor nosso
![[ocr errors]](https://books.google.nl/books/content?id=iMEGAAAAQAAJ&hl=nl&output=html_text&pg=RA1-PA99&img=1&zoom=3&q=%22Louva+o+Feitor+divino,+que+a+Feitura+Com+seu+sagrado+sangue+restaurava.+Amor%22&cds=1&sig=ACfU3U2OKfuAdp5CvrtYNj1l7T-MNnZY3Q&edge=0&edge=stretch&ci=104,1526,14,16)
A quanto vos obriga, doce amigo,
a Seja de ambos de dous só huma a sorte, «Só huma a vida, e huma mesma a Morte. »
Torna o amante então a hir proseguindo Seu caminho, já tenro da brandura, Com que o vai a triste persuadindo, Que tornára de cera hua pedra dura. Vam-se já dos imigos encobrindo D'hum Soveral pela horrida espessura, Aonde ao pé d'huma Arvore, que acharam, Mais triste, e escondida, se apearam.
Ali já do perdido sangue o bello Rosto da linda Dama amortecida, Cahindo de mortal sombra amarello Ficou, e a bocca hum pouco denegrida ; Por cima lhe ficou solto o cabello, E os olhos pouco abertos, escondida A vista tendo, o collo reclinado,
C'hum braço em terra, e outro derribado.
Não de outro modo a viva côr perdendo, Que quando já da rude mão cortada A candida Açucena vai pendendo, Em pouco espaço pallida, e mudada A matutina graça emmurchecendo Aquella suavidade transformada Já em tristes memorias do bem caro, Que tão de preça leva o tempo Avaro.
Assim a triste pallida jazia
Na dura terra junto ao terno Esposo, Qué maldizendo a sorte as mãos torcia, Da certa morte ainda duvidoso, Onde de quando em quando interrompia O impeto de alento soluçoso, A voz desordenada, e dissonante, Ora grave, ora aguda, ora tremante.
Dizendo: «Oh doce amor! doce Esperança, « Esperança não já, pois vós partistes, << Deixando-me só cá a triste lembrança « Pera mór magoa de memorias tristes! « Em que me confiei! oh confiança
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