O coração feroz no peito ardente, Brotar o sangue vê do aberto peito, Possivel he que o justo Ceo permitta » Que injusto Amor, e injusta sorte unidos » Promulguem dura ley com sangue escripta, » Contra fracos mortaes endurecidos ! "Monstro cruel d'amor, e de desdita, » Em quem erros, sem culpa comettidos, "Pedindo aos Ceos estão maior vingança, Que haver perdido a vida, e a esperança. "Os funestos vistigios do ferino »Rigor, que me movia, triste vêjo, » E não me mata a dôr? duro destino! Vingança de mim mesmo ter desejo. » Olhos que mais crueis inda imagino, "Que a dura mão, que tão incauta vêjo, » Enxutos vós, sem luz huma e outra Estrella, "A mão a chaga fez, vós podeis vê-la. "Oh belleza divina, hoje eclypsada "Por esta dura mão inadvertida, Quem como de mim sois, morta, adorada, "Podera com morrer dar-vos a vida. "Tu, sacrilega mão accelerada, "Para do bem maior ser homecida, »Emprega em mim tua furia, volta o ferro, " » Contra este peito, origem do teu erro. » Mas, costumada ao feito atroz, receio » Rebelde a este serás por ser piedoso, "Oh! não seja assim, não! si o caso feio Que agora me serás mais rigoroso, Assim dizendo, sobre o ferro duro Tal é o episodio de Thitonia, o mais pathetico, e dramatico da Malaca Conquistada, a Epopeia mais dramatica, que possuimos. Nas mãos de um homem de genio elle daria assumpto para uma optima Tragedia, ou para um excellente Drama sentimental. Parece impossivel que na epoca em que tantos Mancebos de talento se tem dado a escrever para o theatro, nenhum delles ainda se lembrasse de o tractar! Nasce isto sem duvida da pouca leitura, que actualmente se faz dos nossos Poetas antigos, de que ha tanto, que aprender, e que imitar! A maior parte dos novos Vates contentam-se com lêr, e imitar os Francezes, e não só despresam a leitura dos Poetas Italianos, mas até a dos Portuguezes do seculo de quinhentos, que foi a nossa idade de Augusto, por isso esses livros preciosos se vão cada vez tornando mais esquecidos; por isso a lingua Portuguêza se vai adulterando com uma profusão de galicismos, e anglicismos, que repugnam a sua indole, e a sua harmonia! despojando-se daquella graça primittiva, daquelles modos de dizer pictorescos, daquella loçania de cores, daquella energia, e vigor, que tanto nos encanta em Ferreira, e Camões, e em Garção, e Francisco Manoel, que tanto se esmeraram em imitalos. Oh! com quanta razão clamava o ultimo á juventude Lusitana.. Como em limpida fonte em nossos Mestres E nas Paginas ferteis dos Latinos Não ha em nenhum dos nossos Poemas Epicos uma discripção do Inferno, que possa comparar-se com a, que se lê no Canto VI. da Malaca Conquistada; que rica imaginação na pintura local! que variedade na distribuição dos supplicios! que propriedade na personalisação dos vicios, como estão bem caracterisados os outros habitantes daquella funesta região de lagrimas, e tormentos! Lusbel está ali desenhado com um vigor de pincel, que faz lembrar muitas vezes o Satan de Milton. Bem sei que não faltará quem tache de desacato o, que acabo de dizer, e o attribuirão á falta de gosto, ou exaltação de amor das cousas patrias, de nenhuma destas duas supposições me offendo, nem envergonho; não da primeira, porque o bom gosto é um dote natural, que não depende do individuo, ou possui-lo, ou deixar de o possuir; da segunda porque acho melhor ser notado de demasiado espirito patriotico, que de despresar os nossos pelos estranhos, que muitas vezes valem menos do que elles; direi com tudo, para que me entendam bem, que estou muito longe de preferir o Inferno, e o Lusbel de Sá de Menezes, ao Satan, e ao Inferno do Paraiso perdido; mas sustento, que o quadro do Poeta Portuguez póde apparecer sem grande desvantagem ao pé do quadro do Homero Britanico, e já não é pouco que o nosso Poeta, possa dizer com Correggio, sem ser tachado de arrogancia son pittor anch'io! Pelo menos não ha no Inferno da Malaca Conquistada, alguns defeitos essenciaes, que se encontram no do Paraiso perdido: Milton, por exemplo, que era um republicano exaltado, a ponto de fazer a apologia do regecidio, em vez de procurar o typo do Inferno na Anarchia, segundo ́a judiciosa, e engraçada difinição de Casti L'Inferno ch'e? una anarchia di Diavoli. figurou o reino do Principe das trevas como uma Momarchia representativa, com uma Camara de Lords, e ou tra de Communs, que tem assento em separado, e os seus habitantes unidos, pacificos, e obedientes ao seu Monarcha. But far within, And in their own dimensions like themselves, PARD. LAT. BOOK. I. Temos pois no Inferno de Milton uma Camara de Lords, que em suas proprias dimensões deliberam separados dos Communs, que para prova da sua inferioridade entram no Pandemonio transformados em Anões, ou Pigmeos. Behold a wonder! they but now who seem'd Igualmente o seu odio ao Clero lhe suggerio a lembrança de pintar os Demonios entretendo-se com discussocs theologicas sobre os dogmas da graça, e da predestinação. A sua paixão pela musica, de que elle tinha não vulgar conhecimento, o levou á ficção, mui pouco theologica, de que os Demonios tangendo, e cantando com a perfeição de Espiritos, que haviam habitado o Ceo, com a docura, e prestigios da musica conseguiam adormentar as penas eternas. Estes defeitos sam graves, e mais graves porque sam voluntarios; mas porque os conheço, não deixo de admirar o raro talento de Milton, e de fazer justiça ás innumeraveis bellezas de primeira ordem, com que superabundantemente resgala, e compensa os seus des cuidos. Francisco de Sá de Menezes é muito abundante de sentenças, e maximas moraes, mas em vez de alardea-las, e enfia-las umas nas outras pedantescamente, como praticou Sá de Miranda, elle as embebe (digamo-lo assim) nos discursos das suas persouagens com tanto arteficio, que parece que involuntariamente lhe escapam, segundo a expressão vulgar, por entre os dedos. Outro merito, e não pequeno, do nosso Poeta é saber realçar com a elegancia, e a Poesia da expressão as circumstancias mais triviaes, e menos poeticas, E em alguns, a quem pés, e mãos ataram, Poderá dizer-se por um modo mais elegante, e decente que alguns Portuguezes captivos foram circumcidados por força ? Passou o campo azul de naus arado. Não exprime esta expressão methaphorica com bastantę nobreza, a idéa trivial de atravessar o mar ? Para dizer que Tuão Bandão recebendo do Rei de Malaca o bastão de General lhe fizera reverencia á moda do paiz, serve-se o Poeta desta phrase. Com grata adoração pôsto, que indina, Não indicam estes versos bem poeticamente o romper d'Alva? Fugia cobarde Do claro Dia a Noite, e já as Estrellas Vêja-se em fim esta bellissima Estança, em que o Poeta fazendo memoria de alguns Principes Sarracenos, que se vão retirando da Cidade já rendida ao valor de Alboquerque, e dos seus, especifica o estado lastimoso, em que cada um delles chega á presença do Rei fugitivo. Ali chega Geinal da vida incerto, |