Por mil partes o fino arnez aberto, A acompanha-lo em vão Cambir se anima, Para escrever este Capitulo precorrí de novo a Malaca Conquistada, o bem architectado da sua fabula, a variedade, e bem sustentado dos caracteres, o seu movimento dramatico, a rica invenção dos seus episodios, a formosura nas suas discripções, e sua poesia, verdadeiramente epica, me confirmaram na opinião, que sempre tive, de que depois de Camões, o primeiro logar entre os nossos Poetas Heroicos cabe de justiça a Francisco de Sá de Menezes. 164 ENSAIO BIOGRAPHICO-CRITICO. LIVRO VII. CONTINUAÇÃO DA ESCHOLA ITALIANA. CAPITULO I. Antonio de Abreo. Si attendermos ao testemunho dos Authores contemporaneos, devemos fazer a mais elevada idéa deste Poeta, que pelos seus grandes talentos era geralmente conhecido pela antonomasia do Engenhoso; mas é muito para notar, que as pessoas, que tanto nos abonam o seu merecimento literario, quasi nada nos transmitissem ácerca da sua pessoa, da sua fortuna, dos acontecimentos da sua vida, e da sua posição social. Um dos nossos amigos possue um exemplar da Bibliotheca de Barbosa com varias notas marginaes de letra de mão, que parecem escriptas por pessoa contemporanea, da publicação daquella obra, as quaes contém muitas observações, em que, quem as escreveo, se mostra mui bem informado das materias, e ter feito muita diligencia para apurar a verdade, e corregir os descuidos do Author. Em uma das notas ao primeiro Tomo, se diz, que Antonio de Abreo foi filho de Duarte de Abreo Castello-Branco, Senhor da Quinta da Charneca, e de Brites Teixeira mas não declara onde, e quando nasceo, ou morreo. Como porém ali se não dá á Mãi o tractamento de Dom, nem se declara, que ella fosse mulher do sobredito Duarte de Abreo Castello-Branco, parece que desta circumstancia póde deduzir-se, que Antonio de Abreo fôra seu fi lho natural, ou bastardo, e que não nascêra de legitimo matrimonio. Todas as noticias, que temos a seu respeito, se reduzem a que era homem de boa convivencia, de caracter jovial, e mui prompto em respostas agudas, e que tinha grande facilidade em compôr extemporaneamente em diversas qualidades de metro. Consta mais, que fora intimo amigo de Luiz de Camões, a quem admirava muito, e procurava imitar, e que com elle convivera muitos annos, tanto em Portugal como na India, onde passou grande parte de sua vida, sem que se saiba que motivo o levou áquelles remotos paizes, e em que qualidade residio no Oriente: é porém mui verosimil, que lá fosse com o unico intuito de mercadejar, porque se fosse como militar, ou para exercer algum emprego público, civil, ou de justiça, difficil cousa sería, que delle senão fizesse alguma vez menção nas Obras dos Historiadores daquelle tempo, e com especialidade nas Decadas de Diogo do Couto, de ordinario tão exacto em fazer menção de todas as pessoas, que tinham caracter público. Consta mais que teve um irmão Frade, não se diz de que Ordem, Franciscano talvez, por nome Frey Bartholomeo de Santo Agostinho, a quem sobre o leito da morte confiou uma grande collecção dos seus versos sagrados, e profanos, que elle nunca publicou, e que por isso se julgaram perdidos. Não obstante isso o Professor Antonio Lourenço Caminha, no anno de 1805 publicou um pequeno folheto, impresso na Officina Regia, com o titulo de Obras ineditas de Antonio de Abreo, Amigo, e Companheiro de Luiz de Camões no Estado da India, fielmente extrahidas do seu antigo manuscripto, que possuimos, em Papel Asiatico. Não serei eu quem de estas Obras todas por authenticas na fé de um homem tão falto fé como o Professor Caminha, tantas vezes convencido de haver attribuido aos nossos Poetas antigos Obras evidentemente modernas, e até da propria lavra delle Caminha. Para mim é caso demonstrado, que Antonio Lourenço Caminha nunca possuio o antigo manuscripto de Antonio de Abreo, que seu irmão Frey Bartholomeo deixou perder, em logar de publica-lo e que tal codice escrip to em Papel Asiatico é mais uma impostura daquelle Poeta rolho, e belforinheiro literario. O Abbade Barbosa diz clara, e explicitamente na sua Bibliotheca Lusitana, que as poesias sagradas, e profanas de Antonio de Abreo, compunham uma grande Collecção, e acreditará alguem que elle por esta expressão queria designar vinte Sonetos, uma Ode, uma Sextina, e a Discripção Geographica de Malaca, contendo cincoenta, e oito Estanças? Não de certo, porque o Author da Bibliotheca Lusitana conhecia o valor dos termos, e fallava com propriedade a sua lingua. Acreditará alguem, que Antonio Lourenço Caminha, si possuisse aquella preciosidade literaria, em Papel Asiatico, ou Europeo, deixaria de a dar ao prélo por inteiro, e se contentaria de extrahir della aquelle pequeno folheto? Esta supposição é inadmissivel, em um homem, que com a mira no interesse, que dahi tirava, compilava, quantos manuscriptos antigos, e modernos encontrava, de mui pouco merecimento, e ás vezes de nenhum, para formar volumes, que imprimia em nome de authores antigos, mesmo phantasticos, como um certo Duarte Galvão, Poeta que ninguem conheceo, e que elle Gingio ser Estribeiro do Duque de Bragança D. Theodosio, sem nos dizer qual, sem ao menos apontar o tempo, em que floresceo. Mas serão apocriphas todas estas poesias? Assim o julgo de algumas, mas não o assevero de todas. Tenho como taes alguns Sonetos em italiano mourisco, cheio de erros grammaticaes; alguns Sonetos portuguezes tão ruins pelas idéas, como pela versificação. E' evidente que a Ode ao Bispo D. Jeronymo Osorio, não é de Antonio de Abreo, mas de Pero de Andrade Caminha, e que como tal anda nas suas Obras, impressas pela Academia Real das Sciencias em 1791, onde póde vêr-se a paginas 205, e comparando-se o seu estylo com o das outras Odes, que ali vem, facilmente se convencerá o Leitor, versado nestas materias, que ella é verdadeiramente daquelle Poeta, que eu tenho pelo melhor lyrico da eschola de Ferreira. Ha porém neste Folheto, publicado pelo Professor Caminha, alguns Sonetos, e com especialidade o Poema intitulado Discripção Geographica de Malaca, que pela linguagem, idéas, e versificação me parece pertencerem na verdade ao seculo de quinhentos, e não tenho dúvida em admitti-los como composições de Antonio de Abreo; pois ainda que não acredito que o dito Caminha possuisse como diz, a Collecção que se perdeo nas mãos de Frey Bartholomeu de Santo Agostinho, não vêjo incompatibilidade alguma, que em cumpilações manuscriptas girassem pelas mãos dos Curiosos algumas composições do nosso Poeta, involvidas com as de outros engenhos, e que alguma destas Collecções fosse parar ao poder de Caminha, que tomaria daqui motivo para dizer, que possuia a Collecção completa de Antonio de Abreo, em Papel Asiatico. Admittindo pois como genuinos os Sonetos, de que fallo, que sam quasi todos em estylo ascetico, suscita-se uma lembrança, que talvez não seja desprovida de verosimilhança, isto é, que Antonio de Abreo, cançado de sua vida vagamunda pelas regiões de Africa, e do Oriente, voltando á patria, e desenganado das chymeras do mundo, tomára o habito, talvez da mesma Ordem, que seu irmão havia professado, e findára os seus dias em um Claustro, e nelle composera aquellas poesias. Dou isto como conjectura minha, mas que me parece não ser destituida de fundamento á vista dos Sonetos, que passo a transcrever. Eis aqui o que serve de introducção aos outros. SONETO. Oh vós, que ouvis o som dos nossos (*) versos, E dos sentidos meus já a Deos conversos, Rendei graças comigo da mudança Deste estado sublime, e venturoso, Aquella, que he de nós doce Esperança. (*) Julgo que nossos é erro typographico, ou de copia, e que deverá lêr-se novos. |