Pagina-afbeeldingen
PDF
ePub

CAPITULO II.

Fernão Alvares do Oriente.

193

A

Cidade de Gôa, Metropole do Imperio Portuguez no Oriente, um dos mais brilhantes theatros das façanhas do grande Affonso de Alboquerque, que a conquistou ao Sabaio para ser a cabeça do Estado, que a sua atilada politica, não menos que o seu valor guerreiro, destinava fundar no Oriente, esta Cidade tão rica, e tão suberba, que elle fez o principal emporio do commercio da Asia, e hoje tão decahida do seu antigo esplendor, foi a patria de Fernão Alvares do Oriente, um dos nossos mais famosos Poetas antigos: mas si os seus versos sam muito conhecidos, não acontece o mesmo á sua pessoa, a cujo respeito tudo sam dúvidas, incertezas, e conjecturas.

A epocha precisa do seu nascimento ignora-se, mas parece verosimil que tivesse logar pelos annos de 1540, pouco antes, ou pouco depois nada consta da sua familia, mas podemos conjecturar que sería distincta, e rica, visto que não póde negar-se, á vista dos seus escriptos, que ella lhe dera educação esmerada, e scientifica, e uma educação destas, especialmente naquelle tempo, não a poderia dar a seus filhos quem fosse desprovido dos bens da fortuna.

Esta educação não foi mal empregada; foi semente que cahio em terreno fertil, que depreça fructificou, e produzio abundante seara. Fernão Alvares amava o estudo, applicava-se assiduamente, e por isso fez rapidos progressos nas bellas letras; havia nascido Poeta, e como tal se fez conhecer logo na sua adolescencia.

Commercio, e armas era a occupação de todos os Portuguezes na Asia; nobres, e plebeos, velhos, e moços mercadejavam, e combatiam segundo a occasião o deman

dava; podia applicar-se-lhe aquelle verso, que Camões escreveo em sentido bem differente,

N'huma mão sempre a espada, e n'outra a penna,

a espada para combater os Mouros, e Gentios, defender as fortalezas, abater o orgulho dos Reis, e castigar as suas rebelliões contra o poder Lusitano; a penna para escrever correspondencias mercantís, e lançar no livro mestre a receita, e despeza das suas transações. O Portugal Asiatico, era, nem podia ser outra cousa, um Estado de Mercadores Soldados, como antigamente Carthago; e destas duas circumstancias tirava a sua existencia, a sua segurança, e o seu esplendor, e riqueza.

Não admira pois que Fernão Alvares seguisse na sua mocidade vida militar. O nosso Historiador Diogo do Couto, no Capitulo XIII. da sua Decada IX. conta mui prolixamente, segundo o seu costume, que Hecobat, Imperador, ou Rei dos Mogores no anno de 1573, invadio com um poderoso exercito, pela maior parte de cavallaria, o Reino de Cambaia, e depois de muitas batalhas, em que venceo, e derrotou sempre os naturaes, se apoderou de todo aquelle paiz: não contente ainda com esta fortuna, foi apresentar-se diante de Damão, mandando intimar o Governador, e mais Portuguezes, que habitavam naquella praça, para immediatamente lha despejarem, e entregarem, como fazendo parte integrante da sua nova conquista.

Os Portuguezes na India estavam costumados a dar ordens, e não a recebe-las; mandavam, mas não obedeciam, tinham o seu direito na espada; os seus titulos de posse na força, e esse direito, e esses titulos sam incontestaveis para aquelles, que não tem forças superiores para oppôr-lhe. Em consequencia disto o Governador da Praça zombou do orgulhoso mandado do Mogor; preparou-se para a defeza, e as hostilidades principiaram.

Chegada esta noticia a Gôa, o Vice-Rei D. Antonio de Noronha, conhecendo quanto importava a conservação daquella fortaleza para a segurança do nosso commercio, e do nosso dominio naquellas partes, deu logo obra aos preparativos necessarios para soccorre-la, e castigar o atre

vimento dos Mogores, e pôz no mar uma poderosa armada, em que, além de outros muitos navios, se contavam setenta e seis Fustas bem artilhadas, e guarnecidas de brava, e lustrosa gente.

Não me pertence narrar aqui os successos desta expedição, mas sómente notar, que Diogo do Couto ali faz expressa menção do nosso Poeta, como Commandante de uma das referidas Fustas: o que prova que o cultivo das Musas o não desviára da palestra de Marte.

O Abbade Diogo Barbosa Machado diz tambem, que elle commandára outra Fusta em uma expedição, que teve logar no tempo de Antonio Moniz Barreto: isto nada tem de improbavel, mas nem Barbosa declara d'onde tirou esta noticia, nem eu a encontro mencionada em algum dos nossos Historiadores.

Consta tambem, que Fernão Alvares fizera, naturalmente por motivos de commercio, uma viagem á Cidade de Macau, e de lá passára á Provincia de Cantão, que fica visinha, e é um dos principaes emporios, ou mercados do Imperio da China, e que ali se demorára bastante tempo, e que voltando a Macau, dali se fizera de véla para o Imperio do Japão, não menos rico, e commer. ciante, que a China.

De um episodio da sua Lusitania Transformada parece collegir-se, que elle antes de partir para as Ilhas do Japão havia deixado em Macau o seu casamento justo com uma formosa donzella daquella Cidade, cujo nome era, ao que parece, Catharina; mas que na sua volta a achou esquecida dellé, e empregada em outro, de que tomou tanta paixão, que mandando-lhe todas as cartas, e prendas, que della tinha recebido, se embarcou precipitadamente em um navio, que estava verga d'alto para Malaca, e partíra para aquella Cidade.

Ali tornou a embarcar-se, em outro baixel, que estava de retorno para a Europa; sua viagem foi feliz até ao Cabo de Boa Esperança, onde o colheu uma tempestade, que o fez, si não naufragar, ao menos arribar á Costa d'Africa, onde foi obrigado a demorar-se algum tempo, antes que tivesse logar para continuar a sua viagem para Portugal, onde finalmente chegou a salvo.

Todos os, que tem tractado deste objecto, concordam

com o Padre Joaquim de Foyos, a quem devemos a nitr da, e correcta edicção de Fernão Alvares do Oriente, e que é a segunda, que delle tem sahido á luz, que este episodio contém em resumo a vida, e successos do Author; mas o que se lê na prosa sexta, do livro terceiro, será tambem verdade, ou adorno poetico para dar solu ção á historia de Felicio? Si a resposta fôr pela affirma tiva é claro, que o ciume mal averiguado de Fernão Alvares acarretou a desgraça sobre elle, e sobre a sua innocente amante, pois deu credito á sua infidelidade sómente por uma carta della, que o seu rival lhe mostrou, mas carta forjada por elle, contrafazendo a letra de Catharina, á vista de outra, que obtivera por intervenção de uma amiga perfida.

Consta mais da mesma prosa, que a amante de Fernão Alvares, recebendo as cartas, e as prendas, que elle lhe recambiava sem a ouvir, tomára disso tamanha paixão, e desgosto, que em breve terminou a sua existencia.

Verdade, ou não, que isto seja, parece que a magoa do Poeta o acompanhou, muito tempo, e a inquietação, que lhe causava, o levou em breve á Italia, procurando com a mudança dos logares, e o bolicio das jornadas, e viagens espairecer os pesares, que o opprimiam.

O meu amigo Angelo Tallassi, me affirmou muitas vezes, que em uma livraria de Ferrara, sua patria, encontrára um pequeno livro contendo uma Ecloga, duas Canções, alguns Sonetos Italianos, e outros Castelhanos, com o nome de Fernão Alvares; não affirme, nem o nego; sómente cito o facto, como prova de que elle visitára as principaes Cidades da Italia, sendo mui natural, que elle desejasse percorrer terras tão differentes daquellas, que havia até ali conhecido.

Ali se deu com affinco ao estudo dos Poetas Toscanos, e com especialidade de Sannazzaro, cuja grande reputação estava ainda mui fresca, pois havia passado da vida presente com 72 annos de idade, em 1530, e os seus escriptos pastoraes serviam então de modelo a todos os Poetas da epocha.

É evidente, que a leitura da Arcadia de Sannazzaro lhe suscitou a lembrança de compôr a sua Lusitania Transformada, em que ha visiveis imitações da Obra Italiana,

e elle proprio parece insinua-lo, quando diz no principio da primeira prosa, que havendo deparado com a frauta de Sincero (Sannazzaro) pendurada em um troco do Menalo, tornando com ella á patria, canta com ella, na Lusitania Transformada, as glorias de Deos, e as leis tyrannicas do mundo.

Daqui parece colher-se, que elle trouxera para Portugal a resolução de compôr a sua Obra, e que nessa composição trabalhou aqui nos ultimos annos da sua vida, que talvez não fosse longa, pois a Obra parece não estar terminada; mas ignora-se o anno, o sitio em que teve logar a sua morte, e aonde foi sepultado.

A Lusitania Transformada, é um titulo defeituoso, pois não dá idéa do assumpto da Obra, com elle baptisada. Quando lêmos á frente de um livro A Primavera, ou o Pastor Peregrino, concebemos logo a idéa da materia de que tracta; mas mesmo depois de lida a Pastoral de Fernão Alvares, não podemos entender bem a significação do titulo, e apenas podemos suppôr, que o Poeta quizera dizer, a Lusitania Transformada em Arcadia.

Esta Obra consta de trez livros, compostos de prosa, e Poemas de todo o genero, como a Arcadia de Sannazzaro, e Lope de Vega, e as Pastoraes de Francisco Rodrigues Lobo, com a differença, que naquelles os versos sam sempre separados da prosa, e nesta os versos muitas vezes sam continuação dos dialogos, e das narrações.

Esta Obra é escripta em linguagem purissima, correcta, elegante, posto que a prosa pareça ás vezes desatada, e falta de numero, carecendo da fluidez, e harmonia de periodos, que tanto admiramos em Francisco Rodrigues Lobo. A sua fabula não é implexa, e os seus nexos se soltam verosimilmente pela marcha natural dos incidentes. Ha nella muita imaginação, muita invenção nos episodios, e historias cheias de interesse, de que se compõem. É certo que nella desejaramos encontrar mais quadros Asiaticos, e pinturas dos costumes, e bellezas pictorescas daquellas regiões estranhas; quizeramos antes, que as scenas se passassem nas margens do Ganges, ou do Indo, que nas do Douro, e a historia de Saladino bastaria para nos convencer do interesse, que o Poeta teria por este modo conferido á sua composição.

« VorigeDoorgaan »