As poesias de Fernão Alvares do Oriente, á excepção de uma Elegia, que principiava Saia desta alma triste, e magoada, que consta andar em um Cancioneiro, collegido em 1877 pelo Padre Pedro Ribeiro, cujo manuscripto existia na copiosa bibliotheca da casa de Lafões, aonde pereceo (*) com muitas outras preciosidades literarias, existem todas encerradas na Lusitania Transformada, e é por ellas, que podemos hoje formar juizo do talento poetico do Author. Estas poesias constam de Sonetos, Canções, Elegias, Eclogas, Epistolas, Quintilhas, Estanças, e Epigrammas; e (*) Assim o affirmam o Abbade Barbosa Machado, o Padre Joaquim de Foyos, o primeiro na Bibliotheca Lusitana, e o segundo na sua Introducção á Lusitania Transformada, de que foi Editor, e aqui segui a mesma opinião na falta de melhores noticias. Quando porém fiz nova leitura de Camões para escrever os Capitulos que nesta Obra lhe pertencem, deparei no Volume 3.o da Edição de 1783 a paginas 344 uma Elegia, que como as antecedentes, e as seguintes vem ali recolhidas na dúvida de serem de Luiz de Camões, ou não, mas que andavam dispersas por algu mas Edições das Obras deste Poeta, como consta da advertencia do Editor a paginas 326, no fim da Elegia XII., ultima das que indubitavelmente pertencem a Camões. Os primeiros versos daquella Elegia Saiam desta alma triste, e magoada e o ser feita á morte de um tal D. Tello, que foi morto na India em uma batalha, me fizeram suspeitar que esta poderia ser a Elegia de Fernão Alvares, que Barbosa, e Foyos davam por perdida, pois que o principio, e o assumpto me faziam assim suppôr; passei pois a examinar minuciosamente o estylo, e modos de dizer daquelle Poema, e tirei em resultado o persuadir-me de que elle não era de Camões, porém de Fernão Alvares, e o mesmo que se julgava perdido. e sam, na minha opinião, as mais bellas composições lyricas, que depois das Rhythmas de Luiz de Camões, nos ficaram dos Quinhentistas: Fernão Alvares do Oriente me parece, depois de Camões o homem mais naturalmente Poeta, de mais imaginação, e de gosto mais apurado daquelles tempos, o seu estylo correcto, imaginoso, elegante, e ás vezes sublime, e sobre tudo a robustez de sua expressão, e perfectibilidade de metro apresenta tanta semilhança com o talento, e maneira de compôr do Cantor dos Lusiadas, que alguem chegou a affirmar, que a Lusitania Transformada não era mais que o Parnaso de Luiz de Camões, cuja perda tem sido tantas vezes, e com tanta razão lamentada. Mas esta supposição me parece inteiramente destituida de fundamento: reconheço, é verdade, essa muita semilhança entre os versos, e o estylo de Fernão Alvares do Oriente, e os de Luiz de Camões; mas estou certo, que nenhum delicado conhecedor da materia deixará de sentir, que nas Poesias da Lusitania Transformada faltam certas pinceladas amenas, e graciosas, certa audacia phylosophica, certa maneira particular, e facil de dizer, que parece individual, e privativa de Camões; e que a versificação deste tem mais variedade de cesuras, mais fluidez, e doçura, que a daquelle: tenho por tanto para mim, que tal supposição, mal fundada, deve desculpar-se, como illusão do desejo de encontrar a obra perdida, ou despresar-se como effeito de malignidade, contra o Poeta Oriental. Parece-me que em apoio da minha opinião póde citarse a paixão de Fernão Alvares pelos versos esdruxulos, escrevendo nelles Canções, e Eclogas, inteiras, cousa nunca praticada por Camões, que tinha sobėjo gosto para sentir quanto é desagradavel semilhante modo de escrever, em uma lingua como a nossa, que não tem taes dicções em seus verbos, a não ser com o auxilio affectado de sufixas, e muito poucas nos nomes; foi a leitura, e o exemplo de Sannazzaro, que levou Fernão Alvares a semilhante pratica, sem attender á diversidade do genio dos dous idyomas. Deixando porém este assumpto desagradavel, passarei a apresentar aos Leitores o testemunho de estima, e de admiração, que Fernão Alvares deixou na sua Obra ao Homero Portuguez; acha-se elle no Livro I., e é do theor seguinte: «Muitas estatuas estavam polas columnas do templo, alevantadas, mas consumidas de maneira, que se não deixavam conhecer, nem ainda lêr os letreiros, que declaravam cujas fossem; mas entre todas a estatua do Principe dos Poetas da nossa idade, que cantou a larga navegação dos Lusitanos, a qual se divisava das outras com este letreiro, Principe dos Poetas, titulo, que daqui parece que trasladou á sua sepultura um peito illustre, e generoso. Estava só com toda a sua perfeição, com que seu esculptor ali a posera de principio; com quanto que um esquadrão de Bonzos, e Zoilos, que lhe ficavam aos pés, com muitos tiros pertendiam damnifica-la........ » Estas linhas sam tão honrosas para Camões, a quem sam dirigidas, como para Fernão Alvares, que as escreveo. O discipulo, que honra o mestre, é sempre digno de lou vor. É indubitavel que a semilhança de estylo, que se nota nas Obras de Fernão Alvares, e de Camões nasce do desvelo, com que o primeiro estudava, e imitava os versos do segundo, o que melhor se evidenciará pelas citações, que passamos a fazer. Parece-me que o mestre não desdenharia esta Canção do discipulo. Agora que descança Do triste peito humano os vãos cuidados E já não se ouvem brados De Ovelha, ou de Pastor por estes prados. E o silencio refrêa Diana a luz alhêa Trazendo, no alto assento, Seus cabellos dourados sólta ao Vento. Os Animaes nos montes, Já pelo somno esquecem O pasto, e repousados adormecem. Agora te alevanta, Oh pensamento meu tão mal esperto, Vendo o teu desconcerto, Te mostra para o Ceo caminho aberto. Por onde hirás vôando Em o que vista alcança á summa altura, Quem tudo fez louvando; Em quanto tens segura. A doce occasião da noite escura. E minha Musa agreste Nestes campos amenos Já que não póde o mais, celebre o menos. Que si tanto podera Minha flauta em rudeza ao Mundo rara, O curso da agua clara, Ou se o Ceo me influira Tal graça, que fizera ao Mundo espanto E a Phebo com meu canto Jámais os vãos cuidados Em que o sentido empregam os humanos, De mim foram cantados, Nem os falsos enganos Que me gastaram dez, e outros mais annos. Aquelles, que assignalam Seu preço no valor sanguinolento, Deixara sepultar no esquecimento. Em quem empregaria O talento que assim cobiço agora? Que do Ceo, onde mora, De nós na baixa terra se enamora ! Ao negro esquecimento Vestisse a Terra o Sol de verde manto. Mas pois pobre me vêjo Quão rica a causa, á qual me aspira o peito, Pois este meu desejo, Em tão alto sugeito. Chegar não póde a ter devido effeito. Vós, fonte cristalina, Vós louvaes o Senhor, frescos Rosaes, A frescura alcançaes, De que este alegre canto, e monte ornaes. Vós, Nymphas, e Pastores, Atando em frescos molhos Nas mãos offerecei-lhas, de giolhos. A Flor mimosa, o rudo Espinho, e tudo quanto o valle cria, Ao Creador de tudo Com muda melodia Cantando estam cantares de alegria. Mas ah! que de invejosa, Aurora, derramando o fresco orvalho, Com tua luz formosa Pões a meu canto atalho, Canto, com que eu o punha ao meu trabalho. |