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Fogem, sem se lembrar mais que das vidas,
Os caminhos, e campos occupados
Se mostram de avexada, e triste Gente,
Attonitos, pasmados, e as entranhas
Traspassadas, não sabem onde assentem,
Ou onde lhe será logar seguro,

Sem concerto, e sem ordem vam fugindo
Dos rebates mortiferos; que em dando
Matam sem ter remedio, e estas mortes
Causam temor aos outros; desamparam
As Familias, e Casas, deixam tudo
Fugindo do rigor, que Deos lhe mostra;
Assim desta maneira pola Varzea
Hia toda esta gente em mil manadas.
Todos fugindo vam quanto mais podem,
Receiosos dos males, dos Estragos,
Das perdas, e das mortes, que este mesmo
Famoso Capitão tinha já feito,

Poucos dias havia, em toda a Costa
Desta grande enseada com que, o nome
Delle hera nesta parte assás temido.

Abrazada Goga, cujo incendio durou quatro dias, D. Manoel de Lima manda trazer á sua presença trez Mercadores Banianes, que haviam sido apresionados, e os interroga sobre o numero de gente de peleja, que havia escapado de Goga, e sobre o sitio onde se haviam refugiado; os pobres Mercadores respondem, que os fugitivos eram quasi todos gente inerme, e que tinham procurado refugio em um logar a uma legoa dali.

D. Manoel os obriga a servir-lhe de guia, entra pelo Sertão, e seus soldados passam á espada tudo quanto encontram, sem perdoar a sexo, nem a idade, nem aos animaes, com cujo sangue, e immundice profanam os poços, e tanques consagrados ao rito do paiz, deixam grande numero de Mouros enforcados nos Pagodes, e entre elles os trez Banianes, pacificos pelos principios de sua seita, e que na qualidade de mercadores, e estrangeiros nada tiuham com as desavenças do Sultão de Cambaia, e dos Portuguezes. Depois da narração circumstanciada destas bellas proezas, o Poeta traça com vivissimas côres um

quadro da petulante, e selvatica alegria dos soldados no meio dos estragos, e das ruinas.

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Chegando perto já do Logar, fogem
Aquelles, que estam nelle recolhidos,
Levando seus thesouros; e deserto
Fica todo o Logar ao fogo entregue,
Abrazado foi logo em curto espaço
E com fumosas chammas confundido.

Acabado este damno se recolhem
Onde a armada ficou. Todos cançados
N'hum campo se assentaram, que visinho
Estava da Cidade, e nelle hum grande
Alto Tamarinheiro ali assombrava
Verdes, e frescas hervas com frondosos
Robustos, estendidos, velhos braços.
Em cima dellas põem brancas toalhas
Polas hervas, e flores estendidas.
Aqui nobres Mancebos, ali destros,
E valentes Soldados se assentaram.
Em bom concerto e ordem lhe trouxeram
Com grande diligencia muitos pratos,
Bem povoados de todo o necessario,
Com que os cançados animos recreiam,
Já dos grandes trabalhos esquecidos.

Juntas estam aqui muitas Cotias
Encalhadas na terra, ardendo todas
Em grandes labaredas. Os Soldados
Querendo ali ordenar suas cozinhas,
Assam nellas Cabritos, assam quartos
De gostosas Vitellas, assam gordos,
Assás tenros Cordeiros. Hums não podem
Tanto espaço soffrer a fortaleza
Do desmandado fogo, outros de preça
Com rostos affrontados vam correndo,
Levando nos tostados páos, que servem
De Espetos, assaduras, que estillando
Vam gotas de cheiroso, e quente çumo.
Depois de satisfeitos se levantam

Embarcam-se na armada sem levarem
Desta grande Cidade mais proveito,
Que hum trabalho grandissimo, sustido
Por serviço d'El-Rey com grande gosto.
Porque como esta armada toda fosse
De Navios subtis, e esta Enseada
Mostrasse ali soberbas, procelosas,
E levantadas ondas pola força
Polo impeto furioso das correntes,
Que ali sam sempre certas, e contínuas,
O Capitão pedio, e juntamente
Mandou a todos quantos seguem sua
Vencedora bandeira, que não levem
Destas fazendas grossas, porque possam
Os Navios soffrer qualquer tormenta,
E possam mais ligeiros passar esta
Trabalhosa Enseada a outra banda.
Tudo, por esta causa, foi queimado
Sem nada se salvar, sem dar proveito
A muitos, que ali tem necessidade.

Si alguma cousa falta a esta scena de cannibaes civilisados, sam a meu vêr, as cantigas, os brindes e aquelles alaridos tumultuosos, que em taes casos nunca costumam faltar; nem pareça estranho, que os Soldados de D. Manoel de Lima se banqueteassem em um campo tinto de sangue, e juncado de mortos, e assassem a carne no fogo das embarcações incendiadas. A historia moderna nos apresenta sobejos exemplos destas barbaridades suggeridas aos Soldados pelo delirio da victoria.

No tempo da Invasão da Peninsula pelos Exercitos de Napoleão, narram os papeis publicos desse tempo, que entrando os Francezes á viva força em uma pequena Cidade, os Soldados de um Regimento, comeram o rancho em uma praça della, servindo-lhe de cadeiras os cadaveres hespanhoes, que por ali jaziam, emborcando grandes tarros ao som dos gritos de vive l'Empereur! Em circumstancias iguaes todos os homens praticam as mesmas cousas. Entre as digressões, com que Jeronymo Côrte Real costuma ás vezes amenisar, e interromper a monotonia la sua narração, deve quanto a mim muito especialmenK

te notar-se a seguinte do Canto IX., que é uma especie de Hymno, em louvor da Nação Portugueza.

Antigo Portugal, Reyno ditoso,
Ganhado aos Infieis, e concedido
Por divino favor ao Rey primeiro,
Que, rasgados os Ceos, vio lá na gloria
C'os olhos corporaes as Santas Chagas,
Em ti o gran Marte influe sua potencia,
Fazendo-te temido athe nas partes
De ti mais apartadas, aonde o Indo,
E o furioso Ganges, com crescidas,
Apressadas correntes vam regando
A fertil, opulenta, e rica terra.
Mui fera, e belicosa Gente crias,
Costumada a vencer grandes batalhas,
E a romper mil exercitos famosos,
Com numero pequeno de valentes,
E fortes Cavalleiros; os quaes todos
Dotados sam de esforço, e cortezia,
Pois de honestas Matronas, pois de Damas
Honestas, e formosas, bem se póde
Dizer que hes escolhido em todo o Mundo.
Governado de Reys prudentes foste
Com justiça direita, e santo zêlo,

Aos pequenos, e aos pobres sempre ouvindo
Seus aggravos, seus males, e miserias.
Agora em ti floresce hum Rey potente
Cuja vinda mostrou ser milagrosa;
E quando quasi estavas arriscado
Sugeito a mil trabalhos, e perigos,
Então t'o concedeo aquella Eterna
Divina Magestade. Este promette
Na sua idade tenra um alto preço,
Hum esforço, e valor ao Mundo raro;
Este Senhor será perfeito em tudo,
Segundo claro delle o Ceo nos mostra;
Dar-lhe-ha Deos felices, largos annos
Para que te acrescente em fama, e honra,
E para que com gloria, e nome eterno
Faça o que delle está pronosticado.

Côrte Real, que neste logar tão altas cousas prophetára ácerca d'El-Rei D. Sebastião, passou pelo desgosto de vêr ainda em sua vida desmentidas as suas enfaticas prophecias, o Rei, e a gloria do Reino sepultar-se nas areas de Africa, e a Patria sugeita ao jugo estrangeiro. Agradeçamos-lhe porém os bons desejos, pois em todas as suas obras respira um vivo amor da patria, e um ardente espirito religioso; mas estes dous sentimentos tão nobres, mas pouco illustrados, o levam ás vezes além dos justos lemites, chegando a ponto de descrever com grande complacencia as barbaridades inauditas commettidas por D. Manoel de Lima nas suas excurções pela costa de Cambaia, não só queimando, e arrazando Cidades, estragando plantações, matando ácinte os rebanhos de gado, passando á espada velhos, mulheres, e mininos, fazendo esquartejar vivos centos de prisioneiros, e o que é mais, de fazer a apologia destes excessos nos seguintes versos.

Depois que este logar, que se chamava

Do Abexim, foi queimado, e tudo quanto
Havia dentro delle; determina

O Capitão dar fim ao que já tinha
Começado tão bem, com tanta honra;
E ainda que fazia estas cruezas,
Não hera por cruel, que mui benigno,
Brando, e affavel hera; mas cumpria
Tractar desta maneira huma tal gente,
Porque heram tão soberbos, que daquellas,
E d'outras muitas móres crueldades,
Tinham necessidade; porque sendo
Tractados menos dura, e cruelmente
Levantam de contínuos novas guerras,
Dando novos trabalhos cada dia;

Assi que hera mui justo, e necessario
Doma-los com temor, com força d'armas.

Estas razões não desculpam o santarrão de D. João de Castro de dar tão barbaras ordens, nem D. Manoel de Lima de as haver executado com tão infernal exactidão. O Poeta devia lembrar-se de que si as leis da guerra permittem matar os inimigos armados, nem essas leis,

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