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é Sultão Badur! nada menos que o Rei de Cambaia, que o Poeta, no principio deste mesmo Poema, nos pintou como o mais barbaro, o mais perfido, o mais traiçoeiro, e malvado de todos os homens; como um monstro sitibundo de sangue, um despota orgulhoso, e cobarde, quebrantador de pactos, e promessas, não respeitando nem os bens, nem a vida, nem a honra de seus subditos, o bello ideal em fim dos Tyrannos! Eis aqui o heroe que o Poeta foi buscar para protogonista de um Drama de ternura, para occupar continuamente a idéa da mais bella, e da mais terna das bellezas do Oriente. Onde estava o bom senso de Francisco de Andrade quando pensou, e executou tal desparate? Não vio elle que só a lembrança, e o nome de Badur bastava para matar todo o interesse desta situação? Que as ternuras, e requebros com que elle se despede de sua Esposa, no Canto HII., as lagrimas, que então derrama, e as que verte vendo partir, e amarar-se a nau, em que ella vai, não podia deixar de promover o tedio, ou o riso do Leitor! Um Badur, representando o papel de Myrtillo! ou de Amintas! póde dar-se maior inconsequencia! que conceito podemos fazer da critica de Ferreira, de Caminha, de Castilho, e de outros, que o Poeta consultava, si não viram, nem lhe advertiram este erro, em que cahira! Nas grandes concepções da Epopeia, e da Tragedia é necessario que todas as partes se correspondam, e formem um todo perfeito.

Francisco de Andrade parece que tinha estudado mui desveladamente o Poema de Ariosto, e os dos Epicos que o precederam, como o Morgante de Pulci, e o Orlando Innamorato do Conde de Scandiano Matheo Maria Baiardi, e outros. A imitação destes exemplares é visivel no Cerco de Dio; já pelos Prologos no principio dos Cantos, que ainda que excellentes alguns, por serem todos em estylo serio, não tem o sainete, e chiste, que encontramos nos de Ariosto, e dos outros Italianos, já pelo tom geral da narração, já finalmente por certas formulas repetidas, como por exemplo:

Do que atraz prometti cantar cá ávanté.

Tal vejo cada hum dos que atraz digo.

Logo si me escutaes vos será dito.

é como conta esta historia, &c. não conhecendo o Poeta que estas formulas de dizer prosaicas, sim podem desculpar-se, e mesmo approvar-se em um Poema Romancesco, como os qué nos deixaram aquelles Poetas Italianos, mas de fórma nenhuma podem ter cabimento em um Poema Heroico, em que o Poeta deve suppôr-se arrebatado, e fóra de si cantando, não o que elle pensou, mas o que a Musa, que está presente, immediatamente lhe inspira? É por isso que nem em Homero, nem em Apollonio de Rhodes, nem em Virgilio, nem em Stacio, se encontra semilhantes usos; o mesmo acontece em Camões, Tasso, Milton, e Klopstock, e nos mais Poetas modernos, que se proposeram a colher a laurea do legitimo Poema Heroico, da fórma que o conceberam os antigos, que serão sempre os grandes modelos da alta pocsia, do bello ideal, e do bom gosto.

O que sobre tudo deve tornar o Cerco de Dio precioso para os amadores da Poesia Lusitana, e transmitti-lo á posteridade é a pureza, e louçania da linguagem, o acisado das sentenças, e elegancia do estylo, e a sonora facilidade da versificação. Nestas prendas de grande escriptor não conheço, entre os nossos Poetas antigos, algum que mais se aproxime, de longe embora, a Luiz de Camões. Pena é que a impressão desta Obra desse em mãos de ruins Typographos, que tantas vezes lhe estropearam o sentido, e não poucas a medida dos versos.

Terminarei este Capitulo respondendo antecipadamente, aos que talvez reparem nas longas citações, que delle tenho feito. O Poema do Primeiro Cerco de Dio tem-se tornado tão raro, que só na Livraria Pública desta côrte, e em alguma das particulares mais antigas, e abundantes se depara algum exemplar delle pela minha parte ha mais de trinta annos, que tenho baldado diligencias para alcançar um para completar a minha collecção dos Epicos Portuguezes, em que ha algum merecimento, e por isso os trechos aqui transcriptos foram copiados do exemplar existente na Bibliotheca Pública.

Sendo pois este Poema inteiramente desconhecido da maior parte dos curiosos, julguei necessario alargar as citações, para por meio destes trechos fazer conhecer aos Leitores uma Epopeia, que posto muito irregular pela contextura da fabula, se torna, não obstante isso, de muito valor pelas muitas bellezas de linguagem, estylo, e imaginação, que nella se contém.

Suppomos que em nenhuma nação ha tamanho desleixo, e descuido em reimprimir as Obras dos Classicos como entre nós, sejam ellas de prosa, ou de poesia, por isso ba muitas, que estam fóra de toda a circulação literaria, e o que é peior inteiramente perdidas: o Sr Rolland é o unico Typographo que tem mostrado zêlo incançavel pelas nossas letras, elle é que por meio de novas edições sahidas da sua Officina, tem tornado a vida a muitos dos nossos melhores Escriptores, cujas Obras talvez hoje já não appareceriam, ou sómente a peso de ouro; a elle devemos Sá de Miranda, Ferreira, Fernão Mendes Pinto, Jacintho Freire, Côrte Real, Gabriel Pereira; foi elle que com a sua edição poz ao alcance de todos as Obras de Francisco Manoel, e ultimamente o Ulyssipo de Antonio de Sousa Macedo; esperamos por tanto daquelle benemerito Editor haja de salvar o Cerco de Dio de desapparecer de todo da nossa Literatura.

CAPITULO IV.

D. Isabel de Castro e Andrade.

Não consta ao certo o anno, em que teve logar o nascimento desta senhora, tão illustre por linhagem, como por seu talento, e saber, de que nos sobejam provas nos Escriptores seus contemporaneos, que todos a mencionam com muita honra, e respeito; attentas porém certas circumstancias da sua vida, e o anno da sua morte, que nos consta com certeza, parece-me qué sem grande riscó de errar, podemos suppôr que ella nascera no intervallo que vai de 1830, a 1535.

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Foi seu Pai Alvaro Peres de Andrade, da familia dos Condes de Villa Alva, no reino da Galliza, Commendador de Torres Vedras, e Senhor do Morgado da Annunciada em Lisboa, o qual aproveitando as felizes disposições, que descobria em sua filha, lhe deu uma educação scientifica, demasiada para uma senhora, e que faria muita honra a qualquer homem, que se destinasse para fazer brilhante figura no Mundo Literario.

- Aproveitou-se tanto D. Isabel de Castro dos habeis Mestrés, que seu Pai lhe destinára, que não só se constituio mui perita, e sabedora das linguas antigas, e mo dernas, mas das sciencias maiores divinas, e humanas, a ponto de chegar, com grande applauso, a defender conclusões públicas de Philosophia, e Theologia no Convento do Varatojo.

Não serei eu quem louve Alvaro Peres de Andrade por esta educação dada a sua filha ; parece-me bem, é cer to, que uma senhora seja instruida nas bellas letras, no desenho, na pintura, na musica, e em outros semilhantés conhecimentos, que dam novo realce ás prendas, e graças do seu sexo, que perde muito pela crassa igno

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rancia, em que pelo excesso contrario deixamos hoje corromper a mais bella metade do genero humano: não posso porém approvar que uma Dama se faça Homem, e usurpe o barrete de Doutor, e se dê em espectaculo arguindo em conclusões públicas; acho nisto um não sei que de pedantesco, e de theatral, que se não conforma nem com a modestia, que é propria do sexo, nem com o respeito que se lhe deve. Quero-lhe antes vêr-lhe nas mãos os Lusiadas, que os Santos Padres; quero antes que a belleza mova a agulha sobre o bastidor, e o pincel sobre a téla, que o thelescopio no Observatorio, ou o escalpelo no Amphitheatro Anathomico. A mulher tem uma destinação propria nos planos da Providencia, e o affastarem-se della é uma anomalía, com que nem ellas, nem a sociedade podem lucrar. Esta minha opinião ácerca dá parte, que cabe ás mulheres no grande drama da vida bumana,e me parece ter a mesma applicação respectivamente as Bellas Artes. Herminia terna, sensivel, apaixo nada, como Tasso a pintou no Gofredo, sempre ha-de produzir mais impressão no espirito do Leitor, do que á Virago Clorinda, armada de todas as peças, e combatendo ante os muros de Jérusalem. Nada prova melhor o bom, e philosophico espirito de Voltaire, que o caracter dado por elle exclusivamente ás mulheres nas suas Tragedias: Zaira, Idamé, Merope, Palmira, Adelaide de Guesclein, Amenaida, nos interessam, nos internecem, nos arrebatam, e nos obrigam a derramar lagrimas, ao passo que vemos, com frieza, ou enfadamento, Cleopatra, Emilia, Cornelia, "Medea, engolfadas em politica, envolvidas em conspirações, e negocios de estado, meditando crimes, respirando vingança, e dando aos homens lições de heroismo, e de patriotismo, em estylo enfatico, e empolado; isto prova que em Corneille havia um grande talento, mas gosto pouco apurado, pouco conhecimento da naturcza, e ainda menos philosophia.

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Unia singularidade de D. Isabel de Castro e Andrade é, que havendo casado com D. Fernando de Menezes, quar→ to Senhor de Lourical, e Commendador da Ordem de Christo, quando já contava cincoenta e quatro anдos completos, houve delle dous filhos, a saber D. Henrique de Menezes, quinto Senhor de Lourical, e D. Maria de Cas

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