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nem as da humanidade, e muito menos os preceitos do christianismo, permittem assassinar creanças, mulheres, ve lhos, e cidadãos inoffensivos, e desarmados, e muito menos juntando a essas mortes as horriveis atrocidades praticadas por D. Manoel de Lima.

Côrte Real preocupado com as opiniões fanaticas do seu tempo, persuadia-se, como João de Barros, que emprega longas paginas em argumentar a favor deste absurdo, que os Mouros, e Gentios, e todos os que estavam fóra do gremio da Igreja, estavam privados dos fóros da humanidade, e que suas terras, fazendas, e vida eram propriedade dos Christãos Orthodoxos, que podiam dispôr dellas a seu bel prazer, e por isso julgava licito todo o mal, que se lhe fizesse. Em consequencia desta doutrina, diametralmente opposta ao Evangelho, e á boa Politica, Côrte Real declara necessarias estas barbaridades.

Necessarias!.. Sería mais justo, e mais verdadeiro denomina-las perniciosas, e contrarias aos nossos interesses! Sim, ousemos fallar claro depois de alguns seculos, e em tempos de verdadeira phylosophia, o nosso espirito de dominação, e as violencias, e crueldades de muitos dos nossos Capitães, é que accenderam em todas as nações pacificas do Industão esse odio implacavel contra os Por tuguezes, ao passo que as outras Nações Europeas, que ali aportavam, eram bem, e hospitaleiramente recebidas, e assim devia ser, porque se lemitavam ás amigaveis relações commerciaes, sem exigirem pareas, e vassallagem dos Reis, e sem insultarem, e menoscabarem o culto religioso dos Indigenas, que é a unica injuria, que os póvos não sabem perdoar !

Os nossos historiadores dizem unanimemente, que os Mouros, por ciume de commercio, e por antipathia de religião, com suas intrigas, e calumnias nos tornavam odiosos aos Gentios naturaes da terra. Porém esta assersão é inadmissivel: si os Mouros nos disserviam porque eramos christãos, e negociantes, porque não praticavam o mesmo com os Hollandezes, os Francezés, e os Inglezes? Por que estes póvos longe de se queixarem delles, confessam a grande proveito, que tiravam dos seus serviços? Os Mouros não conhecem Calvinistas, nem Luteranos, nem Zuinglianos, nem Episcopaes, nem Presbyterianos, elles

não entram nas nossas dissidencias, todos os Mercadores da Europa eram para elles Christãos, como para nós sam Mahometanos todos os que professam o Alcorão, sem destinguirmos as differentes, e variadas seitas, em que estam divididos

CAPITULO II.

0 Naufragio de Sepulveda, e outros Poemas de Jeronymo Côrte Real,

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Ainda não tivemos um Poeta tão fecundo em Poemas Epicos como Jeronymo Côrte Real; porém de todos elles o que é mais lido dos nacionaes, e mais conhecido, e applaudido dos estrangeiros é sem duvida o Naufragio de Sepulveda, que talvez seja o mais defeituoso de todos. Os dous que tem passado perante os nossos olhos, posque não contenham fabula epica, sam pelo menos epicos pelo assumpto grande, interessante, e publico; porém HO Naufragio de Sepulveda apenas apparece um assumpto particular, a desgraça de uma familia, que naufraga na costa de Africa, e que nella perece de miseria, e cansaço, e de fome, depois de passarem grandes calamidades; Luiz de Camões nos seus Lusiadas escolheu este successo para fazer parte do seu mais magnifico Episodio, tenho para mim, sem querer dar a minha opinião como regra, que as poucas Estanças, em que elle o descreve, valem mais do que todo o longo Poema de Côrte Real.

A desgraçada heroina deste Poema, D. Leonor de Sá, filha do Governador da India Garcia de Sá, e que passava no seu tempo pela mais formosa Dama do Oriente, era prima de D. Luiza de Vasconcellos, Esposa de Jeronymo

Côrte Real, e o Poeta em obsequio a sua mulher quiz erguer um monumento poetico á memoria, e desventura daquella desditosa senhora.

Por este lado conseguio o Poeta o que pertendia, mas si elle fosse tão rico de bom gosto, como de imaginação, e de talento, si quizesse reduzir-se aos lemites marcados pela natureza do seu assumpto, teria feito um optimo, e interessante Poema de seis, ou oito Cantos, e a sua gloria sería mais pura,

O seu primeiro erro está, quanto a mim, em querer fazer uma Epopeia de dezesete Cantos, sobre um assumpto, que não era epico, pois em vez de uma acção meditada, emprehendida, e perfeitamente desempenhada pelo heroe, só nos apresenta um seccesso eventual, qual é um naufragio, independente da vontade de todos, os que nelle figuram, e um encadeamento de infelicidades da mesma natureza.

Tenho pelo segundo erro do Author a multidão de objectos estranhos, a que recorreo para encher o vasto quadro, que traçára, e que continuamente destrahem a attenção do assumpto principal, quando todo o esforço da arte deveria consistir em concentrar nelle toda a attenção, e interesse dos Leitores. Será injustiça contar no numero destas excrescencias viciosas os episodios do Templo da Verdade, e do Templo da Mentira, onde o Author se entretem a passar em revista todos os Heresiarchas, e a invectivar contra elles? O outro em que um Mago mostra a Pantaleão de Sá, na costa d'Africa, pintada em paineis a jornada de Africa, e a perda d'El-Rei D. Sebastião? Este episodio não só é reprehensivel por ser inteiramente alheio do assumpto, mas porque prejudica o interesse geral da Obra, e esfria a sensibilidade para com os heroes della, pois qual será o Leitor, em cujo peito palpite um coração portuguez, que vendo desmoronarse a Monarchia Lusitana nas margens do Mocazem, eclypsar a gloria de tantos seculos, sepultar-se a independencia da patria com o seu Rei naquellas areas, tenha se quer uma lagrima para o infortunio de uma familia particular, quando a calamidade publica absorbe todos os seus sentimentos?

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Não faria eu grande crime a Jeronymo Côrte Real de

introduzir neste Poema a Mythologia Grega. A opinião pedantesca, que no seu tempo reinava nas escholas, não admittia Poema Epico sem Mythologia Grega, mesmo nos assumptos modernos, nem Sannazaro, nem Ariosto, nem o proprio Tasso deixaram de nesta parte mais ou menos condescender com este gosto dos seus contemporaneos, o que eu lhe não perdoo é o mau uso que fez dessa Mythologia, e entregar os fios todos da sua acção a esses agentes imaginarios, não tirando dessas machinas nenhum grande effeito, nenhuma daquellas bellezas sublimes, que admiramos em Camões.

Todo o fructo que o Author tirou destas machinas mythologicas se reduz a algumas descripções, e alegorias ás vezes engenhosas, e algumas pinturas, e o alardo de uma erudicção frequentemente pedantesca; mas esse fructo é sobejamente descontado com o que prejudicam ao desenvolvimento da acção, e ao effeito do pathetico, e apesar disso o Poeta parece que se não atreve dar um passo, sem valer-se do auxilio daquellas machinas heterogenias. Si Luiz Falcão, Governador de Dio, morre assassinado com um tiro, é porque o Amor aconselhado por Venus, que lhe dá espingarda, para Anthero fazer uso della, accompanhado pelo Odio, Ira, Desespero, e Resolução livra assim Manoel de Sousa de um rival, que lhe desputava a mão de D. Leonor. Si o galeão grande naufraga é porque Amphitrite, e as Nymphas do mar insoffridas de que D. Leonor as exceda em formosura, rogam a Eolo que solte os ventos, para excitarem a tempestade, que motiva a sua perdição.

Se estas invenções parecem mesquinhas, e improprias; devem parecer ridiculos os amores dos Deoses por D. Leonor de Sá: namora-se della Prótheo, só porque a vê assomar-se a uma janella da nau. E eis aqui a pintura que o Poeta faz desta Deidade maritima.

Andava em tal sazão Prótheo pastando
Ali rebanhos mil de humilde Gado,
E vendo a poderosa Nau, parou-se,
Alegre por vêr Gente Portugueza.
A desforme cabeça sobre as ondas
Alça, de verdes limos abraçada,

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Sacode a barba inculta, e os cabellos
Hirtos, e duros mais que a neve brancos,
Olha o antigo velho como as ondas
Arrebentam na Nau alta, e soberba:
Olha os diversos trages, olha a Gente,
Que pelo vêr ao bordo se juntava,
Alçam da poderosa Nau aos ares
Huma grita, que chega ás altas nuvens,
Não se espanta o marinho fero Monstro,
Nem deixa de mostrar lêdo sembrante;
Leonor, que já do mar vem enfadada,
Do prolixo caminho avorrecida,
O subito alvoroço, e grita ouvindo,
Assoma-se por ver o que os espanta,
O velho Prótheo vio, que em duas azas
Espinhosas, e grandes se sustenta,
Attonito, e pasmado; mas de vê-lo
Ella fria ficou, e quasi muda.

Olha o peito escamoso, a côr, e o rosto,
A proporção, e o talhe differente;
Olha aquella figura estranha aos Homens,
Mas conhecida, e usada à Natureza.
Alça os olhos o Velho, firma-os fixos
Nos olhos de Leonor, e não podendo
Soffrer a viva luz, e ardente raio,
Que o frio coração penetrou dentro.

Esta pintura é bella, e poetica; mas será este Adonis marinho muito perigoso para a virtude de D. Leonor de Sá? Será verosimil, que o velho Prótheo, o Propheta do Occeano, o mais sabio de todos os Deoses, que formam a Côrte de Neptuno, represente o papel de amante derretido, que o Poeta lhe attribue? Que este velho venerando dê um descante á sua bella, em oitava ryma accompa nhado pela Harpa de Cimodoee? Pois é isso exactamente o que accontece ; e aqui vai a tal Canção, exactamen te copiada, sem levar, borrão, ou emenda, ou cousa, que dúvida faça.

Remedio do meu mal, quem te detem?
Que te faz, que não venhas dar-me vida?

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