Quem he o que me atalha tanto bem? Chega, verás o mar assocęgado, Verás arder huma alma em triste peito No meio deste mar por ti gritando, Verás hum coração todo desfeito Em lagrimas mil vãas nada esperando, Verás varios affectos n'hum sugeito, Verás amor cada hora accrescentando A' minha grave dôr novo tormento Fiado apenas só do pensamento. Tu verás isto, e Prótheo desventura E hums olhos, que só Deos póde faze-los, Vem, alma minha, vem, vem descuidada, Descobre-me esse rosto tão formoso, Ver-me-has a vida já por ti chegada Ao ponto extremo, e passo trabalhoso ? Vem frol da formosura mais louvada Abranda o peito esquivo, desdenhoso, Apaga já este ardor, pois todo o mar E' Prótheo que falla, ou o Myrtilo de Guarini, ou o Amintas de Torquato Tasso? E ainda esses mesmos, não exprimem as suas queixas amorosas em termos tão alambicados; mas ainda temos que vêr mais Numes arrebatados na formosura de D. Leonor: namora-se della o Deos Pan, que com seus pés de cabra, e com seus cornos retorcidos não é mais bem apposto Galan que Prótheo, mas o Poeta, temendo talvez que nos persuadissimos de que os encantos da sua heroina só tivessem poder, e influencia sobre monstros, lhe dá em fim por amante a Apollo, o mais bello, o mais prendado, e o mais brilhante de todos os Deoses do Olympo, mas que resulta de toda esta farragem erotico-mythologica? Lamentações, lagrimas, cantigas, suspiros, e pensamentos Platonicos, em estylo Bocolico: nenhum desses Deoses sabe o que quer, ou faz uma tentativa para obter as boas graças de D. Leonor, nem para salva-la do infortunio, em que perece! Não é de certo assim, que Ovidio costuma pintar-nos os amores dos Deoses. Em um Poema de Jeronymo Côrte Real, é excusado fallar em caracteres; D. Leonor de Sá é mulher muito ordinaria na ventura, e na desgraça; não sabe mais que gemer, e soffrer. Manoel de Sousa é um homem inconsequente, fraco, sem previsão, nem energia, credulo, e teimoso. Commandante de uma naú, é tão ignorante como o seu Piloto, que procurando o Rio de Lourenço Marques, passa por elle sem o conhecer; achando-se por desgraça á testa de um Esquadrão por cuja segurança deve vigiar, e responder, se entrega á mercê de um Regulo Cafre, dividindo a sua gente, e entregando as suas armas, apesar de todas as representações, que os seus lhe fazem, chegando a sua estupidez a desconhecer que a sua salvação, e a de todos estava na união, e nas armas. Contra todas as regras da poetica, e do bom senso, em logar de principiar com a acção, isto é, a viagem para Portugal, que só tem logar no Canto VI., começa o Poeta a sua narração pelo menos vinte annos antes, com o nascimento de D. Leonor, empregando quatro Cantos, e não pequenos, contando os amores desta Senhora com Manoel de Sousa de Sepulveda, a opposição que seu Pai Garcia de Sá faz a estes amores por ter empenhado a sua palavra com Luiz Falcão, a morte deste mandado assassinar por Manoel de Sousa, o seu casamento com Sepulveda, as festas publicas, e particulares feitas por esta occasião, e o nascimento de seus filhos, eis aqui um exordio que não pode chamar-se ab ovo, mas á Gallina. Mas, dirá alguem, como é possivel que sem embargo desses defeitos, e irregularidades, seja o Naufragio de Sepulveda o mais lido, o mais estimado de todos os Poemas de Côrte Real, e o mais seguro abono da immortalidade do seu nome? A resposta é facil; a vida dos Poemas está mais no estylo, que na boa, e perfeita ordenança delles. Ninguem lê as Tragedias de Campistron bem ordenadas, e fracamente escriptas, e as bellezas de estylo, e a energia das sitações fazem que as Tragedias de Corneille, cheias de defeitos de disposição, e as de Shakespeare mais irregulares ainda, sejam hoje ouvidas, e applaudidas no theatro com o mesmo enthusiasmo com que foram recebidas no seu tempo. É pelo estylo que a Eneida tem contrabalançado, a grandeza da Iliada. O grande Tragico João Racine dizia a seu filho Luiz, o Author do Poema da Religião: «A unica differença que ha entre mim, e Pradon, é que eu sei escrever. » E si isto não é verdade porque as Tragedias de Pradon sam tam ruins pela disposição como pelo estylo, ao menos prova que elle adheria á doutrina de Boileau, de que o estylo é a vida dos Poemas. A fama, e a estima do Naufragio de Sepulveda devemse á sua linguagem, sempre pura, elegante, e cheia de phrases, e modos de dizer energicos e pictorescos; á sua versificação, porque si os seus versos soltos estam ainda longe da harmonia, e precisão, que Bocage, e outros modernos souberam dar-lhe, não deixam por isso de serem mui superiores a todos, que no seu tempo se haviam escripto nas linguas modernas. Deve-se ás suas comparações brilhantes, e originaes, ás discripções, e pinturas, que nelle prodigamente derramou o genio essencialmente discriptivo do Poeta. Tal é esta da partida da nau de Sepulveda sahindo do porto de Cochin, e o principio da viagem. Com véla inchada vai a Nau cortando Se perdem já, e em nevoa se convertém. Mal distinctos os montes, e agras Serras, E deixa Baçain, Cidade insigne, Debaixo de alta rocha fabricado; Obeliscos geraes da Natureza Sem arteficio humano aqui se mostram, A Persia vai deixando, e deixa o seio Ali os Christãos Armenios, e outros muitos Dos outros Moravitas, separados Sam dos que a sacra fé Christãa confessam. Deixa Arabia deserta á parte esquerda, Fundado por Nembroth, robusto, e bravo, |